Os irmãos Kleiton e Kledir Ramil são nomes à frente de dois dos projetos mais significativos que a música popular do Rio Grande do Sul já viu, a banda Almôndegas e a dupla Kleiton & Kledir. O livro Kleiton & Kledir, a Biografia, lançamento do jornalista Emílio Pacheco, mergulha nos bastidores de ambos os projetos e vai além: abordando a trajetória familiar (eles são irmãos de Vitor Ramil e primos do também músico Pery Souza) e os contextos nos quais surgiram e se afirmaram, constrói um painel rico em detalhes que abrange diversos capítulos importantes da produção musical gaúcha e brasileira. Além disso, como as boas biografias, aborda aspectos pessoais da trajetória dos dois personagens com a devida atenção – e responsabilidade. Nesta entrevista, fala sobre sua relação com a dupla e o desafio de construir essa ampla e significativa história.
Além de ser uma biografia de um projeto musical, seu livro perpassa a trajetória de uma família ligada à música e, em alguns trechos, de uma cena inteira – a cidade de Pelotas, primeiramente, depois Porto Alegre e até o Rio de Janeiro. O quanto a tradição, a linhagem familiar e o contexto em que viveram moldou os biografados?
Com certeza a musicalidade de Kleiton & Kledir veio do berço. A família toda era estimulada a aprender um instrumento e exercitar seus talentos. Kleiton, Kledir e Vitor (Ramil) foram os irmãos que acabaram se profissionalizando, mas todos os filhos de Kleber e Dalva, em algum momento, se envolveram com música. E o fato de Pelotas ser uma cidade com forte tradição cultural contribuiu para isso também.
Você se coloca como fã logo na Introdução. Considera que isso facilitou o trabalho?
Sim, bastante, porque eu já conhecia a história da dupla antes mesmo de começar a entrevistar e pesquisar especificamente para o livro. Acompanhei tudo pela mídia desde o tempo dos Almôndegas. As informações que obtive quando iniciei de fato a preparação da biografia apenas trouxeram mais foco e detalhe para o que eu já sabia. Claro que apareceram histórias e passagens que eu desconhecia, algumas delas fornecidas pelos próprios biografados. Além disso, o fato de eu ser fã tornou o trabalho extremamente prazeroso. Sempre gostei de pesquisar sobre meus ídolos da música, imagine então poder fazer isso diretamente nas fontes. Foi muito gratificante.
Biografar personagens vivos significa facilidade de acesso a informações sobre eles, mas ao mesmo tempo alguma pressão para não desagradá-los, ou não?
Acho que é preciso acrescentar: personagens vivos e cooperantes com o livro. Esta é uma biografia autorizada. Não me senti pressionado. A partir do momento em que eles concordaram em colaborar, criou-se naturalmente um vínculo de confiança. Os dois leram a primeira versão do texto e efetuaram algumas correções. É claro que eu jamais iria publicar nada que pudesse desagradá-los. Mas é importante lembrar que não há escândalos na trajetória de Kleiton & Kledir, nenhum envolvimento com drogas pesadas, prisões, triângulos amorosos bombásticos, baixarias, nada disso. Teve o período em que estiveram separados, mas até ali eles demonstraram muita maturidade para lidar com a situação. É uma história bonita de sucesso.
A impressão é de que os dois biografados têm muito desprendimento em revelar-se, inclusive na intimidade. O livro aborda casos amorosos, do liberalismo mais ousado dos tempos de estudantes ao romance de Kleiton com a cantora Nara Leão. Essa impressão faz sentido, corresponde à realidade?
Sim, eles se abriram bastante comigo. Encontraram brecha nos compromissos para responder aos longos questionários que eu enviava à medida que o livro avançava na cronologia. Em alguns momentos, pareciam estar curtindo reviver a própria carreira em nossos diálogos por e-mail. Como uma viagem no tempo, tipo “esta é sua vida”. Acho que aproveitaram o livro para esclarecer alguns pontos e dar sua versão dos fatos. Os depoimentos deles são o grande diferencial da biografia.
Pode-se dizer que a dupla existia antes de ser oficializada – eles chegaram a se apresentar juntos quando tinham seis e sete anos de idade, no colégio em que estudavam. Essa “vida inteira juntos”, pessoal e musicalmente, faz com que suas trajetórias se confundam. Como é biografar duas pessoas nessa condição?
Eles têm personalidades distintas, inclusive na música. Tanto que, no início, não compunham em parceria. Foi aos poucos que encontraram uma fórmula de criação em que o Kleiton faz a melodia e o Kledir coloca a letra. Mas nem sempre. Os dois são ótimos em letra e música. É claro que, como membros da mesma família, eles têm valores em comum. Mas quem os enxerga como um só, em geral, é o público. Minhas entrevistas com eles revelaram que são diferentes em muita coisa e acho que o livro mostra isso. Mas eles se complementam. E essa complementaridade é uma das razões para que a dupla dê tão certo.
No final do primeiro capítulo, você afirma que foi decisivo para a história da dupla ficar no Estado estudando Engenharia em vez de ir a São Paulo explorar o campo da Aeronáutica – uma decisão que repercutiria também na carreira musical. O quanto permanecer no Rio Grande do Sul fez a diferença para Kleiton & Kledir naquele momento de formação?
Essa pergunta seria para eles, mas vou tentar dar meu parecer. Se eles tivessem ido para São Paulo, talvez não concorressem no Festival Universitário da Canção Catarinense (Fucaca), em 1971, que foi decisivo na opção deles em levar a música a sério. Mas, se o vírus da música já estivesse forte dentro deles, teriam participado de festivais na capital paulista e poderiam ter se lançado por lá mesmo. O fato em si de não estarem no Rio Grande do Sul não seria tão decisivo, mas, isso sim, o quanto a atuação na área da aeronáutica se tornaria prioritária para eles. O irmão mais velho deles, por exemplo, o Kléber, também era um músico de talento e acabou preferindo a medicina. O jeito gaúcho de ser eles nunca perderiam, como não perderam com a mudança para o Rio de Janeiro, em 1977.
A partir do momento em que Kleiton & Kledir concordaram em colaborar, criou-se um vínculo de confiança. Acho que aproveitaram o livro para esclarecer alguns pontos e dar sua versão dos fatos. Os depoimentos deles são o grande diferencial da biografia.
Kleiton teve síndrome do pânico no início da carreira, e Kledir descobriu a “meditação transcendental”. Isso naquele início dos anos 1970, quando uma cena musical jovem se formava no Estado, com a rádio Continental, festivais musicais e, claro, grupos como os Almôndegas. Como foi a inserção dos dois nesse universo e qual a importância daquele contexto para a cultura local?
Mais do que pesquisar sobre esse contexto, eu fui adolescente no auge da Rádio Continental e ouvia com entusiasmo o programa de Mr. Lee (o radialista Julio Fürst) todas as noites em 1976. No caso, os Almôndegas já tinham tocado na rádio em 1974, graças ao apadrinhamento do Fogaça (José, compositor e, depois, nome proeminente da política local). Mas quando Mr. Lee começou a rodar músicos gaúchos, em 1975, os Almôndegas, que já tinham LP lançado, se encaixaram com perfeição no movimento musical gaúcho que acabou se formando. Foi um trabalho lindo que terminou cedo demais porque a Lee (marca de jeans) não renovou o patrocínio com o programa para 1977. Discos, saíram poucos, pois ainda não havia selos independentes, muito menos as facilidades do tipo “faça você mesmo” que existem hoje. Mas os Almôndegas conseguiram lançar quatro LPs, um feito extraordinário para a época.
Em que medida Kleiton & Kledir foram forjados pelos festivais dos anos 1970, os regionalistas e os nacionais, como o da Tupi de 1979 em que apresentaram a música Maria Fumaça, ainda antes de oficializarem a dupla?
Cada festival de que Kleiton & Kledir participaram teve uma importância diferente na carreira deles. Quando Kledir venceu o 1º Fucaca, em 1971, eles sentiram que eram realmente bons na música e podiam seguir por esse caminho. Já a vitória na Califórnia da Canção Nativa em 1975 provou que eles também tinham boa aceitação nos festivais nativistas. A participação no Festival da Tupi em 1979, logo após o fim dos Almôndegas, acabou levando espontaneamente à formação da dupla. E depois disso eles ainda concorreram em mais uma Califórnia. A boa resposta que eles tinham nessas competições os estimulava a seguir em frente.
O contexto político, muito apropriadamente detalhado sobretudo no auge da popularidade da dupla, em pleno período de redemocratização ao fim da ditadura militar, parece ter sido importante na afirmação de Kleiton & Kledir, ainda que muitas vezes eles sejam lembrados mais pelas músicas mais leves, bem humoradas. Qual a importância do contexto político na consolidação da dupla?
Como rapazes cultos e estudiosos que sempre foram, Kleiton & Kledir tinham desde o começo uma consciência política em potencial, em estado bruto, que foi se lapidando ao longo da carreira. Começou com as parcerias com Fogaça, depois a influência da jornalista Denise Cunha, que Kleiton namorou na reta final dos Almôndegas (já no Rio de Janeiro), e por fim a convivência com artistas politizados, como os rapazes do MPB-4. O posicionamento que eles adotaram nesta última eleição, agora, não foi surpresa para quem conhece a trajetória deles. Os maiores sucessos da dupla são canções leves e bem humoradas, sim, mas é preciso atentar para outras mais engajadas, como Há um Pouco do Meu Coração em Portugal, Circo de Marionetes, Viração, Vinho Amargo e Can Can do Brasil.