Desde muito cedo, a cantora gaúcha Mell Peck se viu cercada pela música. Criança, ganhou do pai uma guitarra, logo transformada em brinquedo favorito; na adolescência, já compunha canções autorais. Anos mais tarde, soltava a bela voz na noite em festas, eventos, bares e encontros com amigos. Chegou a entrar em estúdio para um trabalho mais profissional, mas a coisa estancou. Quando começou a postar vídeos no YouTube, apostava em covers de artistas dos quais gostava — e o grupo The Cranberries era um deles.
— Eu não era uma superfã. Mas gostava bastante das músicas, e as pessoas pediam muito —conta.
Em pouco tempo, as releituras da banda irlandesa viralizaram em sua paleta de releituras — a memorável interpretação para o megahit Zombie tem impressionantes 36 milhões de visualizações. Para surpresa sua, a fama na web ganhou a atenção (e o apreço) do guitarrista Noel Hogan, não apenas um dos fundadores da banda como seu principal compositor, ao lado da cantora Dolores O'Riordan (cuja trágica morte em 2018 sentenciou o fim do grupo).
Corte para o inverno de 2022, com Mell embarcando para Dublin, para, enfim, conhecer pessoalmente o músico irlandês. E para dinamizar os passos seguintes do The Puro, projeto que, apesar da distância (e da barreira da língua — Mell não domina totalmente o inglês), a dupla já comunga há algum tempo.
— Nem sabia que ele me seguia — disse a cantora. — Nunca fui de marcar nem nada. Aí um dia fui pesquisar e vi que o Noel me seguia desde 2019. Nunca imaginei isso.
Ao postar uma mensagem, ouviu de Hogan que ele gostava muito de seus vídeos e interpretações do Cranberries. Nascia ali a parceria.
Falando direto de seu estúdio na capital da Irlanda, o guitarrista não disfarça o entusiasmo com o duo:
— Por um tempo, seguimos trabalhando a distância sem nos preocuparmos com nada. Lançamos o primeiro single, Prisão, e agora, um segundo, Com Chaves. Foi quando alguém falou: "Agora vocês têm de ter um nome".
The Puro, ele afirma, "surgiu muito naturalmente, após tentarmos diferentes ideias. E nós gostamos do flow da palavra", resumiu, esforçando-se na pronúncia das sílabas em português.
O som é um dream pop de ótima lavra. Climática, de diferentes texturas, Prisão tem letra em português de Mell flertando com a guitarra etérea de Hogan.
— Português foi nossa primeira opção, porque é a língua nativa de Mell — explica o guitarrista. — Trabalhamos muito em Prisão, na estrutura, em nuances, vendo quais instrumentos tínhamos de tirar ou acrescentar. Basicamente, a letra em português estava pronta sem nem termos pensado na versão em inglês.
Posteriormente, Prisão ganhou versão acústica, mais suave e intimista, intitulada Prison, tão boa ou melhor do que a original — e mantendo a letra em português.
Já em Com Chaves/With Keys, a segunda colaboração, Hogan revela que o processo foi mais dinâmico.
— Foi uma ideia minha que gravei em uma noite, mandei para a Mell e ela rapidamente desenvolveu a letra. Gostamos da vibe, tipo duas pessoas em uma boate. Quando a tocamos em uma live, acrescentamos o cello e ficou muito bom. Ficamos surpresos com as boas reações, apesar de ela não representar a essência de nosso trabalho, o jeito das demais canções que temos — alega.
Além de estreitar a parceria que já existe há dois anos, o extenso cronograma de Mell em Dublin serviria para horas de estúdio, a confecção de material promocional e a primeira apresentação conjunta do duo, para a TV irlandesa.
— A expectativa é muito boa, de fazermos muitas coisas por lá. E depois, o Noel também está bem animado para vir pra cá — adianta a cantora.
Hogan crava que estará aqui em agosto:
— Temos a esperança de fechar alguns shows por aí. No começo do Cranberries, só excursionávamos pelos EUA e pela Europa, mas na primeira ida ao Brasil, que foi bem louca, descobrimos como o público aí é intenso. O que é ótimo para você tocar.
Longe dos palcos até antes dos dois longos anos pandêmicos, Hogan afirma sentir imensa falta dos shows.
— Estou na estrada desde que deixei a escola. A longo prazo, isso até enjoa. Mas faz cinco ou seis anos que não faço um show completo, o mais longo tempo que fiquei em casa. Então é difícil, acho que enlouqueci minha mulher, meus filhos e até o cachorro — ri.
Seus projetos solo (Mono Band e Arktekit, ambos com o cantor Richard Walters), que datam da época do break do The Cranberries, não têm previsão de retomada. E ante a pergunta de tantos fãs mundo afora — se há ou não material ainda inédito do grupo —, ele avisa:
— Sempre preferimos acreditar que lançamos tudo o que tínhamos, mas coisas de que a gente não se lembrava continuavam a aparecer. Então, até onde sei, não há. Mas não ficaria surpreso se surgissem diferentes versões de coisas que fizemos no passado.