Na bruma leve das paixões que vêm de dentro, ele chega para brincar no quintal do Parque Farroupilha. Não exatamente em seu cavalo, tampouco com peito nu: Alceu Valença vem a Porto Alegre e já é possível escutar os seus sinais. O cantor e compositor pernambucano reencontra o público gaúcho nesta sexta-feira (19), a partir das 21h, no Auditório Araújo Viana (Av. Osvaldo Aranha, 685).
Acompanhado de Leo Lira (guitarra), Tovinho (teclados), André Julião (sanfona), Nando Barreto (baixo) e Cassio Cunha (bateria), Alceu traz à capital gaúcha a turnê Anunciação - Tu Vens Eu já Escuto os teus Sinais. No palco, o cantor apresentará diversas facetas de seu trabalho.
— É um show misto. Tem o Alceu São João: é baião, é xote, é xaxado. Alceu compositor contemporâneo, com minhas músicas de sucesso: Como Dois Animais, La Belle de Jour, Girassol, Solidão, Tropicana, Anunciação e Coração Bobo. No final, também tem Alceu frevo — explica o músico.
Ele antecipa também que haverá homenagens a dois amigos gaúchos: Mario Quintana e Luiz de Miranda, que sofreu um infarto em setembro e chegou a ser internado em unidade de tratamento intensivo (UTI). Com muita ternura e risada, o músico sempre se diverte ao lembrar do dia em que foi a uma livraria com Miranda e mantiveram os guarda-chuvas abertos dentro do estabelecimento.
Aos 75 anos, Alceu já recebeu a terceira dose da vacina e tem retomado a estrada, onde costumava passar boa parte do tempo antes da pandemia. Após o período de quarentena, em que a realização de lives foi uma medida paliativa, o músico tem reencontrado no público a mesma animação de antes.
— Me sinto cada vez melhor no palco. É a minha vitamina. É energia. Sinto uma enorme alegria em estar diante do público — atesta.
No entanto, o cantor retorna ao palco com uma ausência: o guitarrista pernambucano Paulo Rafael morreu, aos 66 anos, no dia 23 de agosto, em decorrência de um câncer. Ele fazia parte da banda de Alceu e do Ave Sangria. Paulinho, como é chamado, tocava com o músico havia mais de 45 anos. Chegaram a gravar juntos durante a pandemia.
— É muito triste, muito difícil. Nunca tivemos a menor briga. Praticamente começou a carreira comigo. Sempre nos entendíamos, ele era de uma cidade perto de onde nasci, com a cultura do sertão profundo. Foi um guitarrista diferente de todo mundo: a maioria tinha referência de Beatles, Rolling Stones, Iron Maiden, enquanto ele não. Eu dizia: "Paulinho, seja mais Paulinho Caruaru" (risos). É difícil, mas a vida segue. Temos que nos acostumar. A vida é passagem, e ninguém sabe para onde. A dor é grande, ainda estou de luto, mas vamos embora. Grande pessoa, p*** que pariu — lamenta.
Estrada, disco e livro
Durante a quarentena, Alceu se reconectou com seu violão. Como vivia na estrada antes da pandemia — em 2020, após o Carnaval, estava com mais de 60 shows agendados para turnês no Brasil e na Europa —, a última vez que havia tido maior contato com o instrumento foi quando vivia em Paris, nos anos 1970, o que resultou no disco Saudade de Pernambuco (1979).
O isolamento rendeu uma trilogia de discos lançados neste ano. O primeiro álbum chegou em março, intitulado Sem Pensar no Amanhã, que traz releituras acústicas e intimistas — voz e violão —, além do samba inédito que dá título ao álbum. Segundo o músico, o disco segue um roteiro de cinema, propondo uma viagem que a quarentena lhe impediu de realizar.
Em junho, Alceu lançou a segunda parte da trilogia. Intitulado Saudade, o disco segue o formato voz e violão de seu antecessor. Na faixa que dá nome ao álbum o cantor verbaliza seus sentimentos do período de quarentena: "Saudade de amigos como eu confinados/ Que, mesmo distantes, se encontram ao meu lado/ Saudade da estrada, saudade da rua". Em 11 faixas, o disco é permeado pelos sentimentos de nostalgia e melancolia.
Já nesta sexta-feira (19) chega o terceiro disco da trilogia, intitulado Senhora Estrada. Novamente com base na voz e violão, o trabalho desta vez remete à infância de Alceu.
— Remete a São Bento do Una, cidade onde nasci, e que tem uma coisa muito ibérica. A minha convivência com os aboiadores do mato, os sanfoneiros da minha cidade. Vem o embolador, vem o violeiro, vem a feira, todas essas lembranças. Tem até música de Luiz Gonzaga: "Quando eu vim do sertão/ Seu môço, do meu Bodocó" (canta trecho de Pau de Arara). Mergulhei no meu universo, na minha infância e na minha influência primal — explica.
Além dos discos, Alceu planeja lançar um livro em 2022. Trata-se de uma obra que ele produziu na estrada ao longo dos anos:
— Nessas viagens enfadonhas de avião, ônibus ou carro, eu escrevia poemas e crônicas. Houve pedidos para lançar um livro com esse material para o ano que vem. Já tá pronto.
De qualquer maneira, Alceu deve acumular mais material para um segundo livro nos próximos tempos, afinal, ele está voltando a viver na estrada. Tem shows marcados no Brasil até dezembro. Em janeiro, parte para turnê na Europa. Em fevereiro, espera se apresentar no Carnaval, especialmente em São Paulo (onde lidera o bloco Bicho Maluco Beleza) e Olinda. Também vislumbra mais shows para o primeiro semestre, já planejando as festas juninas no Sertão. Ou seja, uma gana para recuperar todo o período que ficou parado, sem o palco e o público.
— Tempo todo correndo — resume.