Foi por meio do Orkut que Geraldo Flach (1945-2011) ficou sabendo que na cidade de Osório morava um adolescente que era fã de seu trabalho. O artista, empolgado com a descoberta, foi correndo contar para a sua esposa, Ângela, a novidade "fascinante". E, mesmo "achando o máximo" aquele jovem que o considerava uma referência, o encontro presencial entre os dois nunca aconteceu. O tempo passou e, em 2011, o pianista faleceu, vítima de um câncer.
Porém, mesmo sem o abraço entre o ídolo e o seu fã, o legado deixado por Flach se encarregou de conectar os dois. O jovem de Osório era Cristian Sperandir, hoje com 31 anos e um premiado pianista, tecladista, compositor, arranjador e produtor musical, que se aproximou da obra do mestre e, agora, é um dos responsáveis por um disco tributo inédito chamado Flachianas, que traz releituras de algumas das criações mais marcantes do músico porto-alegrense.
Apoiado pelos Amigos da Sala Jazz Geraldo Flach de Porto Alegre, o álbum conta com 10 faixas e é de autoria de Cristian Sperandir Grupo, além de contar com convidados que resgatam — e reimaginam — clássicos de Flach. A instrumental Rancheirinha, por exemplo, ganhou letra composta por Jerônimo Jardim e é interpretada por Shana Müller. Já Paola Kirst canta Novo Rumo, gravada originalmente por Elis Regina. O próprio Sperandir também solta a voz em Cão Vadio. Além disso, Lorenzo Flach, neto do músico, toca guitarra na faixa Reencontro.
— Geraldo Flach foi uma referência para mim. Então, é uma responsabilidade muito grande interpretar a obra dele e, além disso, poder criar em cima dela. A gente fez releituras das músicas, com novos arranjos, mas com um respeito muito grande, apesar de tentar colocar a nossa própria identidade em cima — explica Sperandir.
De acordo com o músico, é "essencial" fazer este resgate histórico e, com ele, apresentar o trabalho de Flach para a geração de hoje. Assim, o grupo liderado por Sperandir apostou em uma "roupagem um pouco mais moderna", inserindo aspectos do pop, do jazz contemporâneo e da música brasileira, mas mantendo a essência original do trabalho.
E esta nova interpretação da obra do artista seria aprovada pelo próprio, garante Ângela Flach, viúva do músico e uma das produtoras do projeto:
— O Geraldo era o rei de pegar uma música e reinventar. Me lembro que ele fez isso com Asa Branca e demorei alguns minutos para entender que música era. Ele adorava fazer essas releituras e ia aprovar o que está sendo feito com a obra dele, tenho certeza.
Flachianas está em pré-venda nos formatos digital e físico e pode ser adquirido no site. A previsão de lançamento é dezembro.
Só começando
— É meio clichê dizer isso, mas o Geraldo não morreu. A obra dele não morreu. E isso é maravilhoso — reforça Ângela.
E tanto é verdade que o disco Flachianas é apenas a primeira parte de um ciclo de homenagens programadas ao músico dentro do selo Tributo a Geraldo Flach. Além do álbum, um documentário em longa-metragem sobre a obra do artista está sendo preparado, assim como um songbook, relembrando a trajetória do instrumentista e arranjador que apresentou sua arte em palcos nacionais e internacionais.
Ângela conta que a ideia dos tributos ao músico é antiga e se intensificou quando Cristian Sperandir demonstrou interesse em gravar a obra de Flach. Assim, foi-se formando um time, "cada um com uma função", sob coordenação da produtora cultural Lia Magali Zanini que, fascinada com a obra do pianista, acelerou o processo de produção das obras que homenageiam o artista.
— Está ficando bem bonito. Estamos colocando muito coração — enfatizou Ângela.
O documentário está sendo preparado há quatro anos, com o resgate de arquivos televisivos do artista e com a decupagem deste material. Sob a batuta do cineasta Rene Goya Filho, a produção pretende focar justamente na obra de Flach e menos na vida do artista.
— A ideia nunca foi fazer um filme de arquivo, mas, sim, um filme vivo, até porque a obra do Geraldo segue viva e, incrivelmente, ainda desconhecida por muita gente — explica o cineasta.
Goya Filho reforça que Flach "sempre foi um cara da linha de frente" da música instrumental brasileira e, por isso, existem muitos registros dele em emissoras de TV desde a década de 1960. A produção agora busca recursos para incorporar mais pessoas ao trabalho e, assim, conseguir lançá-lo até o final de 2022.
— Eu, que trabalho com imagem e som há muito tempo, sei que os dois juntos têm a capacidade de vencer a morte. Quando tu assistes à imagem de alguém vivo, tocando, quando isso se materializa na tua retina, se vence a morte. E eu acho que esse projeto, a essência dele, é justamente isso, a gente dando um pulo por cima da morte para assistir à obra do Geraldo — diz Goya Filho.
Já o songbook está sendo trabalhado em cima das muitas partituras deixadas por Flach e que foram guardadas por Ângela. Os documentos foram catalogados pelo músico, amigo e arquivista Luiz Martins. E o objetivo de trabalhar em cima deste material é, antes de tudo, transformá-lo em fonte de pesquisa, exercício e novas criações.
— Uma obra maravilhosa e enorme como essa não pode ficar presa em uma gaveta, a gente não tem esse direito — finaliza a viúva do artista.