Por Shana Müller
Cantora e apresentadora do programa Galpão Crioulo, na RBS TV
"Eu sempre gostei do diferencial", me disse a Berenice Azambuja (cantora que morreu na noite de quinta-feira, aos 69 anos) em um papo-live que tivemos em abril do ano passado no Instagram do Galpão Crioulo.
Da paixão pela cordeona, que via na casa da tia; o presente de Natal da mãe, aos sete anos, que trouxe a cordeona para seus braços, até a paixão pela música gaúcha despertada por uma visita ao Grêmio Gaúcho em Porto Alegre, tudo isso Bere contou nessa conversa. De maneira informal, trajando um pala, direto de Vila Lângaro, pertinho de Passo Fundo, onde havia se aquerenciado, em meio à natureza, perto do rio, com seus cachorros, gatos e cavalos, numa espécie de refúgio junto a sua família. "Eu moro onde não mora ninguém", afirmou gargalhando.
O abraço que daria no instrumento, quando o encontrou em cima da cama aos sete anos de idade, daria o tom de sua vida. Berenice viveu abraçada à gaita. Foi com ela que percorreu os mais diferentes cantos do Brasil e tornou-se uma das poucas artistas do Rio Grande do Sul a encontrar reconhecimento nacional.
E eu poderia, aqui, nessa lembrança em forma de texto, falar apenas das músicas e da história que todos conhecem. Muitos, inclusive, devem estranhar o fato de justamente eu estar aqui escrevendo essas linhas, já que, há alguns anos, escrevi um texto que trazia críticas às músicas gaúchas e incluía seu grande sucesso, É Disso Que o Velho Gosta, como uma das canções apontadas.
Não se assustem. Berenice sempre respeitou minha opinião e, na verdade, era uma pessoa – sim, porque não consigo dissociar o artista do ser humano – que prezava pelas diferenças, inclusive de pensamentos e ideias.
O exemplo da música, usado por mim na ocasião, falava do preconceito que há muito está intrínseco na sociedade, na arte e que sabemos: é estrutural. Está até mesmo em como nós, mulheres, nos vemos e nos comportamos. Essa reflexão, sabia ela, não diminui o respeito à obra. Toda a criação é sempre retrato de um tempo.
Naquela live no ano passado, nós falamos abertamente sobre machismo, sobre o preconceito que ela sofreu muitas vezes, como a vez em que foi fazer show em um CTG e teve que trancar o pé para subir ao palco trajando um chiripá. "O senhor arrume outra acordeonista, ou outro acordeonista homem, porque eu não vou colocar vestido de prenda para subir ao palco", sentenciou, com apenas 19 anos, ao patrão da entidade que a havia contratado.
A roupa estilizada, criada por sua mãe era uma "veste gaúcha, e bonita", disse ela, questionando por que não poderia usar. Da mesma forma, foi ela a primeira mulher a dançar chula e a dança dos facões, manifestações folclóricas executadas exclusivamente por homens.
Berenice sempre será mais que suas canções. Seu legado para a arte brasileira está na alegria de suas músicas, claro, mas também no seu comportamento precursor e transgressor, por que não dizer. Tocar música gaúcha, depois de ter começado na música popular brasileira, foi escolha dela, mesmo consciente de que o machismo imperava para tudo.
Hoje menos, penso eu, por atitudes e histórias como a dela que nos inspiram diariamente a sermos livres e defendermos nossos ideais de vida.
Em março deste ano, fiz o convite oficial para Berenice fazer parte do Peitaço da Composição Regional, um evento, hoje um movimento artístico, que busca ajudar as mulheres a conquistarem seu espaço no universo da arte regional. Ficou faceira e entrou para nosso grupo de WhatsApp. Uma pena não podermos ter tido tempo de desfrutar mais dos seus ensinamentos nesse projeto. Sua obra, suas vivências estarão para sempre conosco, nos apontando caminhos para um mundo de mais respeito e igualdade.
Como diria uma de suas canções:
"Sou gaúcha, de faca na bota
Ninguém me provoca que eu viro o diabo.
Se tu pensas que o meu coração
vai morrer de paixão, tu estás enganado.
Dou um boi pra não entrar na peleia,
mas se a coisa é feia eu topo a parada.
Se é briga o que quer, entro nela
E para não sair dela eu te dou uma boiada".
Seguimos peleando por aqui, minha amiga. Vai em paz!