Luiz Carlos Borges está em fase de reinvenção. O músico acaba de lançar seu primeiro trabalho após a cirurgia cardíaca que o deixou 85 dias hospitalizado, no ano passado. Rio Infinito Lado A, que está agora nas plataformas de streaming, dá largada ao projeto de dois EPs em duo com o violonista Yuri Menezes – o segundo conjunto de faixas deve sair até o final do ano.
Rio Infinito Lado A conta com cinco temas instrumentais de autoria do gaiteiro, escritos especialmente para serem tocados ao lado de Yuri, instrumentista que acompanha Borges há mais de 10 anos. Foi também há cerca de uma década que as gravações começaram, para estabelecer um show em dupla, já que Borges costuma se apresentar com formações mais numerosas. As gaitas e as bases de violão foram gravadas na largada, mas havia necessidade de inserir mais violões e realizar a mixagem, etapas que foram se arrastando no meio de outras demandas musicais. Depois de nove anos na gaveta, Borges resolveu retomar o projeto e provocar Yuri a finalizar o álbum.
Nesta entrevista, Borges diz que a diferença de idade entre ele, 67 anos, e Yuri, 29, tem pouca relevância na parceria, opina sobre o atual cenário da música regional e fala como está reinventando seu modo de fazer música.
Rio Infinito Lado A tem uma sonoridade original. A gaita é acompanhada por um violão rasqueado, que praticamente não toca melodias em primeiro plano, mas faz contrapontos e dialoga com o acordeom. Como chegaram a esse resultado?
Gosto das composições, há muitas melodias bonitas no disco, mas acredito que o maior interesse do trabalho é de fato essa prosa entre violão e gaita. A nossa referência maior em duo na América talvez seja Rudi e Nini Flores, mas não foi uma influência tão grande para nós porque o trabalho deles vai por outro caminho. Tem raízes profundas, mas também agrega outra bagagem, por eles terem morada na França e tocado com muita gente da Europa. Eu e o Yuri somos da mesma região, compartilhamos os mesmos modos de caminhar e de pensar e temos os mesmos amigos, apesar da diferença de idade. Estamos impregnados dessa terra, e isso vai para as canções resultando algo muito forte. Esses ponteios e contrapontos são uma forma de ser nas Missões. É o nosso jeito de andar e de falar. Está na música, mas também no jeito de carpir, de cortar a lenha, de martelar um prego. Tudo entra para as canções.
Assim como as Missões, as diferentes regiões do Estado também têm modos originais de ser e de fazer arte, embora nem sempre isso seja claro para quem mora na Capital. Na sua avaliação, Porto Alegre ainda precisa descobrir o Rio Grande do Sul?
Com certeza. O meu sonho é que todo o povo, especialmente da Capital, se desse conta da riqueza desse jeito de ser que está guardado por aí. O meu desespero é que as coisas vão se perdendo sem registro. Muita gente de Porto Alegre ainda olha de na nariz empinado a cultura do Interior, sem sequer experimentar. Quando a gente bate de frente com alguém que é esperto, que sabe das coisas da cultura e também tem humildade, percebe que essa pessoa desce de qualquer pedestal para ir ao encontro desse jeito de ser. Na Capital, um exemplo disso é o Humberto Gessinger. Ele conhece Gildo de Freitas, gravou Gaúcho da Fronteira, toca comigo e com tantos outros músicos do meio regional. Mas muita gente do meio artístico da Capital olha com maus olhos e não consegue engolir essa raiz. E é verdade que muita gente do Interior também tem ranço com a Capital. Mas é esse meio termo que precisamos encontrar, porque é produtivo para os dois lados.
O duo com Yuri tem uma dinâmica que pode ser melhor explorada também em outras formações da música regional?
Sim. É muito linear a forma como conduzem a música regional gaúcha. Há muito gritedo e um violão mais alto que o outro. Quase não há dinâmica. A performance começa em 75% do volume e chega aos 95%, quando não atinge os 100%. Nos festivais, há algumas exceções, mas geralmente é assim, decibéis em cima de decibéis. Há um espírito de “já ganhamos”, um desejo de patrolar. Isso nunca combinou com arte.
A sua dedicação ao chamamé talvez ajude a ter uma dinâmica distinta. É parecido com o jazz, mais aberto ao espírito coletivo e possibilidade de improviso.
O chamamé é muito mais isso que tu estás dizendo do que show propriamente. Já disse isso, o chamamé é o jazz do futuro. As melodias são lindas, a rítmica é muito bonita e é circunferencial. É um ritmo ternário, que vira seis por oito, o que ajuda a dar esse sentido de circunferência. Ele parece que está na água, sempre arrodeando. A prova é Merceditas, que tem quatro ou cinco acordes, mas dá para fazer um show inteiro com ela. A melodia propõe muitos caminhos, a harmonia é simples, mas pode ser desmanchada de tudo que é jeito sem se descaracterizar, como se faz há muitos anos com Asa Branca, do Gonzagão, por exemplo.
O senhor tem participado de muitas lives e agora acaba de lançar um EP. Como avalia esses momento da carreira após a cirurgia?
Estou sempre com essas ideias de ruptura. Não gosto de ficar inerte, mesmo quando estou me reinventando. Tenho sérios problemas para tocar. A mão esquerda não está bem boa ainda. É uma reconstrução, mas não é só dando show instrumental que irei me reconstruir. Podemos nos reconstruir com ideias, com descobertas. É o que estou fazendo.
O senhor fala no sentido de não mais buscar um virtuosismo técnico, mas uma musicalidade mais abrangente?
Algum virtuosismo que se poderia ter está gravado. Agora, dá para fazer coisa muito legal que substitui tudo isso. A descoberta da harmonia, das notas longas, do sabor de tocar, de abrir o espaço para o outro... Demorei muito para me dar conta da importância de deixar espaço, de não preencher tudo, de deixar quem está tocando contigo preencher. Eu era muito de vir lavrando tudo. Sempre respeitei muito os colegas, mas tinha esse desespero de não parar de tocar. Essas descobertas têm transformado minha música.