Às vésperas de completar quatro décadas de existência, a banda paulistana Ira! lança o seu primeiro disco em 13 anos, disponibilizado no começo de junho nas plataformas digitais. Trata-se também do primeiro álbum de inéditas com a nova formação do grupo criado em 1981: além dos fundadores Nasi (vocalista) e Edgard Scandurra (guitarra e vocal), completam a banda Johnny Boy (baixo) e Evaristo Pádua (bateria). O Ira! chegou a encerrar suas atividades em 2007, ano em que lançou Invisível DJ, e voltou a se reunir em 2014.
Levando o nome da banda no título, o disco foi gravado e mixado no estúdio A9 Audio, em São Paulo, entre o final de 2019 e início de 2020. O trabalho tem sido bem recebido pela crítica, apontado como um dos melhores da banda desde os três primeiros álbuns.
O lançamento de Ira estava previsto para abril, seguido de uma turnê pelo país para divulgar o disco. No entanto, a pandemia causou uma mudança de planos.
Em entrevista a GaúchaZH, Nasi e Edgard Scandurra falam sobre o novo trabalho e o contexto em que está sendo lançado.
Como foi a construção de "Ira"?
Edgard Scandurra — Precisávamos de um tempo, de 2014 até 2018, para descobrir a cara dessa nova formação. Comecei a criar músicas. Muitas canções surgiram nesse período de tempo. Em 2019, mandamos bala. Começamos a gravar após o Carnaval do ano passado. Tivemos algumas paradas por causa de shows e compromissos. Conseguimos chegar a esse repertório. É um disco independente: nós cuidamos de tudo, capa e som. Nos sentimos livres para realizá-lo. Foi um desafio para a gente, com tantos discos históricos, fazer um álbum que enfrente de igual para igual a nossa própria discografia.
Nasi — Já tínhamos algumas músicas novas, mas fomos relutantes em lançar single, como é hoje muito comum. É um contexto em que o artista não precisa ter um disco: lança uma ou duas músicas por vez. Nós ainda temos muito tesão em trabalhar com o conceito de álbum. Isso para gente é importante: ter músicas que conversem entre si, que tenham uma sequência de dinâmica bacana.
Um elogio recorrente a este trabalho é que teria uma qualidade similar a dos três primeiros discos do Ira!. O que lhe parecem essas comparações? Houve alguma busca às raízes da banda neste trabalho?
Scandurra — Fico muito feliz com essas comparações. São músicas muito marcantes que há nesses três primeiros discos, e as pessoas estão percebendo que este álbum tem características assim. Cada canção tem uma energia por causa da poesia, da sonoridade, do instrumental. Aproveitamos esse álbum para deixar as músicas acontecerem. Não nos prendemos nos padrões pop, com músicas de três minutos. É um disco que a gente se preocupava que, quando fossemos tocá-lo ao vivo, prendesse a atenção das pessoas tanto quanto os clássicos prendem.
Nasi — Para a gente foi um alívio, estávamos superapreensivos. Acho que houve uma simplicidade mais gritante neste disco. Teve uma busca da gente fazer um Ira! próximo de suas vertentes. Tem o som mod do Ira!, influenciado pelo The Who e bandas dos anos 1960. Tem os momentos pós-punk. Tem as baladas de amor. Tem o Ira! clássico.
Que tipo de salto esse disco traz em relação ao trabalho anterior, "Invisível DJ"?
Nasi — Qualidade de composições. E de mais tesão, pelo fato de ser uma nova formação. No disco de 2007, a relação estava desgastada. Eu gravei os vocais separados da banda. Não tinha aquela alma que este disco tem.
É um disco cujo título é somente o nome da banda. O que isso representa?
Nasi — O título tem várias pequenas razões. É um manifesto sobre este tempo de conflitos, irracionalidades e intolerâncias entre as pessoas. Tudo isso está representado nos tempos de ira que a gente está vivendo. Tem também o sentido que é um novo Ira!, com uma nova formação. Tem até uma coisa mais esdrúxula: The Who lançou um disco este ano, décimo segundo disco autoral, que é o mesmo número deste álbum. Assim como nós, eles estavam há 13 anos sem lançar nada inédito. E o disco do The Who se chama apenas Who. A gente é muito fã (risos).
Um dos singles divulgados de "Ira" é "Mulheres à Frente da Tropa"". A faixa foi acompanhada de um clipe delicado, gravado na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, com referências e homenagens a protagonistas femininas, entre elas Marielle Franco. Edgard, por que você fez questão de cantar essa faixa?
Scandurra — Essa faixa é reflexo da minha convivência intensa de 2013 para cá com movimentos ativistas e de direitos humanos. Eu toquei algumas vezes na ocupação. Colaborei nos almoços que tiveram lá para arrecadar fundos. Conheci a Carmen Silva, que é a líder da ocupação, e a Preta Ferreira, que é sua filha. Fomos nos aproximando. Aí houve o assassinato da Marielle Franco, e fomos deparando com essas forças reacionárias, com o preconceito muito evidente por aí, vide racismo e machismo. Como uma banda de rock masculina, é importante a gente reconhecer o protagonismo das mulheres e ter um registro desses. Eu quis cantar essa música justamente por ter esse envolvimento muito intenso e próximo de movimentos ativistas. É importante para a nossa história mostrar essa relevância da mulher perante às reivindicações sociais. Acho que elas têm nos últimos anos enfrentado uma repressão cada vez mais violenta e são sempre muito corajosas. Então, é uma homenagem.
De certa forma, “Mulheres à Frente da Tropa” vai ao encontro das atuais manifestações antirracistas e antifascistas que tem ocorrido no Brasil e no mundo. A música acaba sendo uma maneira da banda se posicionar?
Scandurra — Acaba sendo uma grande onda de direitos humanos e igualdade. Uma busca de um mundo melhor, embora pareça distante, mas ainda é um sonho. O rock já teve uma época bonita cujo ideal era transformar o mundo. A gente tem um ideal lá íntimo de querer mudar o mundo.
Nasi — Esse momento a gente vê com muita perplexidade, não só o Brasil, mas o mundo inteiro. Todas as lutas por direitos civis e combate à intolerância de todas as formas, que marcaram as décadas em que cresci, 1960 e 70, parece que tudo isso foi por água abaixo. Parece que estamos voltando para as cavernas.
Por conta de alguns artistas, há quem associe o rock ao pensamento reacionário. Um dos elogios ao Ira! que pude observar nos comentários de “Mulheres à Frente da Tropa” foi o fato da banda seguir um caminho oposto a essa classificação.
Scandurra — Fico muito triste com alguns artistas aí que vestiram essa camisa. Foram para as ruas e deram apoio explícito. Nós jamais faríamos uma coisa dessas. Do meu ponto de vista, é impossível ficarmos isentos e quietos, sem dar a cara a bater. Temos que estar juntos com o nosso público. Agora começaram a mostrar uma face mais reacionária mesmo, por serem classe média, por terem enriquecido depois, sei lá. Não só gente da minha geração, tem bandas dos anos 90 também. Tudo bem, a gente vive numa democracia. A gente não é obrigado a pensar no mesmo lado. Mas quando a gente vê elogios à tortura, palavras de xenofobia, preconceitos com a comunidade LGBT+, ainda mais vindo do rock.... Rock é glamour, é andrógino. É toda a experiência de loucura física, mental e espiritual. Como é que a pessoa pode apoiar uma coisa conservadora e violenta?
Nasi — Vejo isso como um certo exagero. Acho que quando estão falando desse assunto, estão se referindo especificadamente ao Lobão e ao Roger Moreira. Da minha geração de roqueiro, dos anos 1980, você não vai ver isso nos demais músicos. Acho que há um estereótipo do roqueiro no qual o Ira! nunca se enquadrou. Nossas referências são os mods, são os punks politizados como The Clash e The Jam. Eu não consigo ver que o rock ficou reacionário. Talvez certos estereótipos pareçam.
O Brasil vivia sob uma ditadura quando o Ira! se formou. E lá se foram quase 40 anos, com trocas de governos e moedas. Que país é esse em que o Ira lança seu novo trabalho? Sentem que há uma volta aos anos iniciais?
Scandurra — Estamos num momento que, às vezes, lembra mais 1964 do que 1981. Lembra mais uma retomada de valores conservadores e comportamento saudosista da repressão e antissocialista. Estamos lançando esse disco em uma época bem nebulosa, ainda mais numa pandemia.
Nasi —Total. Quando o Ira! surgiu em 1981, até mais ou menos 1984, qualquer música que você ia lançar ou tocar num barzinho tinha que passar pela Polícia Federal. O Ira! teve canções vetadas antes de serem lançadas, como Gritos na Multidão. Mas nem naquela época vivi a atmosfera que vivo hoje. Parece que estamos em um clima de golpe iminente, de ameaça às liberdades, a guerra contra a cultura e o conhecimento científico. Parece que o Brasil tem um governo de tentativa de volta à Idade Média. É assustador.
Como é lançar um disco em meio a uma pandemia?
Scandurra — Lançamos esse álbum para nosso público ter uma novidade. Poderíamos guardá-lo e esperar essa pandemia terminar... Nunca tive dúvidas sobre como seria o dia de amanhã. Hoje já não sei mais. Não tem como planejar uma turnê. Não tem como saber o futuro. Por isso é muito importante ter esse disco para as pessoas conhecerem as músicas. Muitas delas são pertinentes ao momento que estamos vivendo. Algumas são mais introspectivas, combinam com a solidão entre quatro paredes. É um jeito da gente entregar algo ao público enquanto não podemos fazer show.
Nasi: É frustrante. Tudo isso cria uma estranheza, uma apreensão. A pandemia fez com que a gente adiasse o disco em um mês. Adiamos um pouco para ver se as coisas clareavam, mas não clarearam nada, continuou um ponto de interrogação. Tento tirar algo positivo disso. Quando os shows voltarem, acredito que será diferente. Quando o Ira! lançou o último disco de inéditas, em 2007, as plataformas digitais não existiam. O público que ia no nosso show só conhecia as músicas novas se tivesse comprado o CD. Desta vez, acho que teremos um público conhecendo as músicas nos shows, pois as faixas estão mais acessíveis.
É curioso que a letra de “A Nossa Amizade” traz versos como "Deixemos Assim/ Alguns metros de distância, agora é assim". Uma música premonitória...
Scandurra —É mesmo. O engraçado que é a letra mais antiga do disco. Fiquei com ela na cabeça. Depois escrevi e adaptei o que lembrava dela. A letra é de 1992 ou 93. Já a música é bem nova. Outra faixa que também é premonitória é Chuto Pedras e Assobios: “Vai que o mundo acaba/ Vai que a gente some" (risos).