Entre as inúmeras injustiças que este país já viu serem cometidas, está a de que o Ira! nunca estourou comercialmente no mesmo patamar que colegas como Titãs, RPM ou Legião Urbana. Sendo a mais sessentista das bandas brasileiras dos anos 1980, o Ira! sempre sofreu com o rótulo de ser paulista demais. Agora, a um ano de completar 40 de carreira, nada mudou. Ainda bem.
Seu 12º disco, que leva apenas o nome do grupo e é o primeiro de inéditas desde 2007 (quando houve uma separação), é tão bom quanto seus três primeiros. Esse foi, inclusive, o desafio que o guitarrista Edgard Scandurra lançou para si mesmo ao compor essas dez novas canções.
— Na minha experiência com a música eletrônica, eu percebi que as pessoas dançam músicas que não conhecem e não se importam com isso. Pensei por que o público de rock não poderia ter essa sensação. O desafio foi não concorrer com nosso repertório, mas fazer canções que estivessem na mesma linha e fossem tão fortes quanto os nossos clássicos. Quis retornar aos palquinhos onde começamos em 1981 — diz Scandurra.
Com certeza, a missão foi cumprida. O DNA do Ira! está presente em todo o disco. A guitarra de Scandurra parece nunca ter estado tão certeira. Seja nas bases, como na abertura Amor Também Faz Errar, como nos solos, evidentes, por exemplo, em Respostas.
Nasi está cantando como nunca, de vez em quando dando aquela acelerada na letra, quando a frase parece ser maior do que o tempo destinado a ela.
— Isso acontece no refrão de O Amor Também Faz Errar (risos) — diz o vocalista. — É que o Edgard escreve e eu tento encaixar. Não dá para respirar, foi uma das mais difíceis de cantar.
Nossa Amizade traz a singeleza de Mudança de Comportamento, álbum de estreia da banda, de 1985. É uma canção que mostra que o Ira! não perde certa ingenuidade, certa honestidade, quase sempre falando amor de forma desajeitada, adolescente, como se fosse uma banda saída de um festival de música da escola.
Mulheres à Frente das Tropas, como o título diz, festeja as "Jovens mulheres, adolescentes/ Lutam por todos nós, até os descrentes". Ela coloca em cena a faceta política da banda, "sem ser panfletária, meio existencial", fala Nasi.
Já Você Me Toca é um funk pesado, no melhor estilo de Vitrine Viva, sucesso do segundo LP, Vivendo e Não Aprendendo, de 1986. Essa música encerra o lado A com honras e louvor. Espera aí? Lado A? É isso mesmo. O Ira! não gravou um punhado de músicas, mas sim um LP com lado A e lado B, trazendo junto tudo o que esse conceito significava quando os discos de vinil reinavam solitários nas vitrolas e não existiam CDs nem muito menos plataformas de streaming.
Quando o disco tinha dois lados, a primeira música era a principal, como ainda é, mas a última do lado A também tinha sua importância e solenidade. O ouvinte teria que se levantar para virar a bolacha e assim se preparava para a experiência do lado B.
Efeito Dominó, portanto, apesar de aparecer na sexta posição, é a segunda grande canção do disco, abrindo o lado B. É uma parceria de Scandurra com Virginie Boutaud, a vocalista da banda Metrô, também dos anos 1980.
É um épico, com ecos de western espaguete, ou melhor western escargot, já que Virginie canta longas estrofes em francês, remetendo mais à Ballade de Melody Nelson de Serge Gainsbourg e Jane Birkin do que ao Bob Dylan de Knockin' on Heaven's Door.
Chuto Pedras e Assobio parece espelhar a segunda do lado A, com sua despretensão existencialista, assim com a terceira ("Desconfio de Você", quase um Devo) de cada lado é a música mais diferentona e a quarta é a política.
A bateria de Evaristo Pádua e o baixo de Johnny Boy completam essa nova formação do Ira, que, no entender de Nasi, é a mais intensa em quatro décadas. Agora falta vermos o novo disco no palco, lugar que a banda tem frequentado bastante nos últimos anos. Em 2019, fizeram cerca de 80 shows, em ginásios ou praças em todo o país, com até 5 mil pessoas.
Algumas apresentações para o lançamento de Ira já estavam até marcadas em algumas capitais, mas foram canceladas com a quarentena. Outro adiamento é o lançamento de Ira em vinil, para ser ouvido da forma que foi concebido. Com lado A e lado B.