Se já foi normal para o folião questionar a orientação sexual de Zezé por conta do cabelo dele ou dizer Maria também é João, hoje esses versos soam pejorativos. São encarados com estranhamento. Na última década, marchinhas que faziam sucesso em Carnavais de outrora foram "canceladas" por blocos de rua pelo país. Isso em razão de letras que remetam a homofobia (Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão), racismo (O Teu Cabelo Não Nega e Nega Maluca), machismo (Maria Escandalosa e Andorinha) e, inclusive, violência contra a mulher (Dá Nela) – o que convencionou-se a chamar de conteúdo politicamente incorreto. Uma reportagem de 2017 do jornal O Globo já apontava para esse movimento: blocos como Mulheres Rodadas, Cordão do Boitatá e Charanga do França baniram essas marchinhas.
Em Porto Alegre, não é diferente. Criado em 2007, o bloco Maria do Bairro vem há alguns anos aplicando essa revisão histórica de seu repertório. Segundo o carnavalesco do bloco, Zeca Brito, há algum tempo músicas como Maria Sapatão ou Cabeleira do Zezé foram banidas do desfile – que além de marchinhas, costuma apresentar sucessos pop.
— Por mais que naquele período histórico isso fosse admissível ou a sociedade celebrasse de uma maneira muitas vezes ingênua, hoje se há esclarecimento suficiente para que a gente não torne o Carnaval um espaço para que algumas pessoas possam se sentir ofendidas ou marginalizadas em detrimento da alegria de outras — destaca Brito.
Conforme o carnavalesco, o Maria do Bairro acredita que o Carnaval tem que ser um espaço de inclusão e respeito às diferenças. Brito assegura que há centenas de marchinhas bonitas. Assim, esses clássicos não representariam nenhuma grande perda.
— É uma interpretação saudável e histórica de querer uma sociedade melhor. Algumas canções agridem as pessoas e não podemos incentivar isso numa festa que é democrática como o Carnaval — atesta.
Por outro lado, músicas como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão permanecem no repertório do bloco porto-alegrense Deixa Falar. Como faz questão de ressaltar o fundador do coletivo, Maqui Borges, no repertório não entra funk ou sertanejo: apenas marchinhas, como Ó Abre Alas e Mamãe Eu Quero. No entanto, há canções que foram banidas da folia do Deixa Falar.
— Cortamos umas quatro ou cinco músicas incorretas em relação à discriminação racial. Outras não teve jeito, pois o pessoal pedia e não havia problema de gritaria. Nosso bloco nunca teve nenhum atrito ou quebra-quebra — relata Maqui.
Porém, ele pondera:
— As marchinhas devem ser encaradas como festa e brincadeira.
Rei das marchinhas
Autor de algumas marchinhas "canceladas" – como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão –, o compositor carioca João Roberto Kelly tem 81 anos e segue em atividade, seja criando músicas ou se apresentando. Responsável por Mulata Iê Iê Iê, Bota a Camisinha e Joga a Chave, Meu Amor, ele é conhecido como o Rei das Marchinhas.
Sua produção mais recente é a Marchinha do Mister, que pede Jorge Jesus, técnico do Flamengo, no comando da Seleção Brasileira. Desde de seu início de carreira nos anos 1960, suas canções atravessaram gerações. Ele encara como um ensaio para a censura os blocos evitarem determinadas marchinhas.
— O Carnaval é uma brincadeira. Você não pode colocar freios. A finalidade é brincar, é o homem se vestir de mulher, você botar um sujeito barrigudo, sair criticando e brincando dentro dos limites. É o faz-de-conta — queixa-se. — Esse negócio de politicamente correto me cheira muito à ditadura.
Para Kelly, o politicamente incorreto no Carnaval é outra coisa:
— A violência que ocorre nos blocos. Pessoas que se infiltram nos blocos para fazer bobagem, que sujam as ruas da cidade. Isso que é politicamente incorreto contra a alegria e não ofende a uma determinada classe, mas ao Carnaval em si.
Tudo muda
Professor de comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF) e julgador de samba-enredo da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), Felipe Trotta destaca que é um movimento natural da sociedade rever ou evitar repertórios musicais que podem ser considerados ofensivos nos dias de hoje.
— A música é uma atividade humana que participa das negociações que fazemos sobre o que é a vida em sociedade. Sempre acontece desta forma: alguns repertórios são deixados de lado ou alterados em função de mudanças de percepção de uma coletividade — explica.
Já Helena Cattani, historiadora e pesquisadora sobre o Carnaval, frisa que muitas marchinhas clássicas foram criadas em um contexto histórico diferente, em que a sociedade tinha um outro tipo de humor ou que ignorava o preconceito:
— A sociedade sempre muda, e o Carnaval sempre foi um reflexo dos anseios da sociedade.