Os vizinhos do Edifício Caraguatatuba, nos Jardins, onde João Carlos Martins, 79 anos, mora há mais de 40 anos, voltaram a ouvir o som do piano no apartamento do último andar. O pianista voltou a tocar de uma hora para outra graças a uma luva adaptadora que lhe devolveu os movimentos dos dedos (menos o médio da mão direita).
Em janeiro do ano passado, tocando apenas com os polegares, Martins que virou maestro tinha se despedido do piano, mais uma vez, em grande estilo, em uma apresentação no Fantástico e havia dito que, dessa vez, seria para sempre.
O que aconteceu nesse meio tempo? Pouco antes do Natal, ao final de um concerto em Sumaré, no interior de São Paulo, depois de muito esperar na calçada, um desconhecido conseguiu entrar no camarim para lhe entregar um estranho par de luvas pretas.
— Ele deve ter pensado que eu era maluco — lembra o designer industrial Ubiratã Bizarro Costa, 55. Foi exatamente o que Martins pensou, já acostumado com as figuras que lhe aparecem nos camarins prometendo curas milagrosas.
Duas semanas depois de testar as luvas biônicas, que quebraram de tanto ele tocar com força, convidou Bira para ir a seu apartamento. O artesão anônimo tinha feito o primeiro protótipo baseado apenas em fotos e vídeos das mãos do pianista projetadas em 3D. Na semana passada, Martins foi à casa de Bira para experimentar e ajustar um novo protótipo.
Com hastes de aço sobre os dedos, que funcionam como molas, presas a uma placa de fibra de carbono, as luvas mecânicas cobertas com neoprene custaram a Bira R$ 500 com a compra de material.
— Eu não sei te explicar, mas essa engrenagem fez com que, ao dedilhar o piano, meus dedos fossem e voltassem à posição normal. Antes, minhas mãos ficavam sempre fechadas — diz o pianista.
De lá para cá, cinco protótipos depois, ele não tira mais as luvas nem para dormir. É para se acostumar a ficar com as mãos novamente abertas.
— As luvas vão amoldar as mãos ao cérebro com o tempo. Em breve, vou tocar de novo o concerto de Bach em ré menor — anima-se o velho novo pianista.
Bira se especializou em design para produtos automotivos, mas nos últimos quatro anos começou a fazer protótipos de adaptadores para pessoas com deficiência. Ao ver Martins no Fantástico, ele começou a pensar numa solução para o maestro.
Em 2018, na última das 24 cirurgias que já enfrentou, o médico Rames Mattar eliminou as dores que Martins sentia desde que caiu sobre uma pedra, jogando bola no Central Park, em Nova York, em 1965, o primeiro de uma série de acidentes em sua vida.
Sem dores, mas também sem ter mais movimentos dos dedos, João Carlos Martins, ícone da música clássica mundial, já parecia conformado quando apareceu o artesão Bira.
— É um recomeço. Na primeira vez em que consegui tocar com todas as teclas, fiquei com lágrimas nos olhos. Há 21 anos, eu não tocava com a mão direita. Sentir de novo todo o teclado do piano, ouvir o som...
Bach, Mozart, Liszt, todos vão ressurgindo na ampla sala-estúdio.
— Um, dois, três, quatro, vamos de novo — repete várias vezes. Perfeccionista e teimoso, com uma paciência infinita, ele toca até não errar nenhuma nota, um erro que só ele percebe.
Bira ainda não o ouviu tocar, mas estará como convidado especial na plateia dos três concertos marcados para o dia 25, aniversário de São Paulo, quando vai estrear as luvas.
A maratona começa às 10h no Theatro Municipal, com a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP. Depois, vai para a Av. Paulista, em frente à Fiesp, às 14h. E termina às 16h, nas escadarias do teatro, com a Orquestra Sinfônica Municipal, que só apresentará obras de Villa-Lobos, na abertura das comemorações da Semana de Arte Moderna de 1922.