Gênero responsável por cerca de 80% das músicas mais tocadas no país, segundo levantamento de 18 de janeiro da Crowley*, o sertanejo não começou a dominar o mercado nacional ontem. Isso vem desde a década passada, quando nomes, como Victor & Leo e Michel Teló, estouraram. Na mesma época, o gênero enfrentava dificuldades de penetrar no mercado gaúcho que prestigia seus artistas nativistas. Mas, nos últimos anos, o sertanejo nacional não tomou conhecimento de fronteiras e passou a figurar na ponta das canções mais tocadas por aqui também, lotando shows. Por ironia, na contramão do movimento, os sertanejos locais peleavam para brilhar nos palcos dos próprios pagos.
Foi então que, em 2019, gaúchos, como Rodrigo Ferrari, Eh Expresso e Sandro & Cícero, começaram a colher os louros de anos de batalha e de investimento em composições autorais, ganhando destaque no mercado local. Eles passaram a mostrar que o Rio Grande do Sul produz, sim, muito sertanejo de qualidade.
Entenda o que levou à mudança de cenário, o que dizem os artistas daqui sobre o momento e o que pensa a respeito um ícone do tradicionalismo.
* Crowley é a empresa que monitora a execução das faixas em rádios em todo o país.
Identidade própria: é raiz!
Sertanejo de destaque dos últimos anos, integrante habitual das listas de canções mais tocadas nas empresas que monitoram as faixas mais executadas nas rádios, como a Crowley, Rodrigo Ferrari, com oito anos de carreira, afirma que os sertanejos locais tentam seu espaço em bares e casas noturnas há muito tempo. Porém, na avaliação dele, o crescimento dos artistas gaúchos tem ocorrido, principalmente, por focarem suas apostas em produções suas.
— Antes, os artistas daqui cantavam músicas de outros. De uns anos pra cá, começaram a investir mais em músicas próprias. Com canções autorais, passaram a ter suas identidades e, com isso, conquistaram espaço na grande mídia e nos grandes shows – analisa.
Desde o começo
Rodrigo tem a faixa Oh Sentimento entre as 200 canções mais executadas em dezembro, nas rádios de Porto Alegre e da Região Metropolitana. Está à frente de nomes como Maiara & Maraisa, Jorge & Mateus e Anitta. Para ele, a exigência dos fãs fez com que os artistas direcionassem sua energia.
— Desde o início da minha carreira, apostei em músicas próprias. Os fãs querem, cada vez mais, novidades — avalia o porto-alegrense, morador de Canoas "a vida toda", como ele mesmo diz:
— Para isso, o artista tem que ter um bom produtor musical e escolher bons compositores, caso não seja compositor. Hoje em dia, temos bons no mercado.
Nacional com toque local
Um dos principais grupos dos últimos tempos, com agenda marcando cerca de 20 shows mensais, com clipes com mais de 500 mil visualizações no YouTube, o Eh Expresso comemora o momento que o sertanejo local vive. O vocalista Gabriel considera uma banda de Mato Grosso do Sul como uma das grandes influências.
— Nossa geração foi muito influenciada pelo Tradição na época em que o Michel Teló era seu vocalista (ele saiu da banda em 2009). Respiramos aquela época! — relembra.
Para ele, os artistas locais vêm ganhando destaque pelo fato de que os fãs consomem muito sertanejo. Isso faz com que mais artistas escolham esse gênero para se dedicar.
Repaginada necessária
Com hits como Zé do Choro, que aparece seguidamente entre as mais pedidas da 92 (92.1 FM) e tem mais de 390 mil visualizações no YouTube, o Eh Expresso celebra a ótima fase do gênero por aqui. São números significativos para uma banda que começou a sua trajetória em Viamão, há cerca de 20 anos.
Com o argumento de que os sertanejos "mandam no show business nacional", Gabriel acredita que o ritmo como um todo, no país, está sendo influenciado por movimentos regionais.
— O sertanejo nacional olha para o Sul e nota que o gênero forte aqui é a vanera. O que faz? Coloca toques de vanera na sua música. Daí, olha para o Nordeste e vê que o forro é forte lá. E mescla forró com sertanejo — traça a sua visão do cenário local e nacional:
— Wesley Safadão, depois que saiu do Garota Safada (antigo grupo do cearense), deu uma repaginada para deixar o conteúdo dele mais genérico, com menos forró e mais sertanejo. Se ficasse tão regional, não entraria nos ouvidos e no mundo.
"Quanto mais profissionais, mais o mercado se fortalece"
Do farto cenário do interior do Estado, que, com suas feiras, seus rodeios e suas festas, muitas vezes, abraça mais os sertanejos do que a Capital, vem a dupla Sandro e Cícero. Na lista das 200 músicas mais executadas da Crowley, em janeiro, em Porto Alegre, os músicos emplacaram a faixa Coloca o Dedinho Aqui, em 47º lugar. E têm outros hits, como Me Adota, gravado em parceria com a funkeira paulista MC Mirella, com impressionantes 4 milhões de visualizações no YouTube.
Em entrevista por e-mail, Sandro, natural de São Borja, lembra que, em 11 anos de parceria, ele e Cícero, de São Sepé, viram o surgimento de muitas duplas e o fim de outras. Para ele, os artistas locais têm potencial para ganhar destaque no país:
— Quanto mais duplas, mais cantores, mais profissionais trabalhando, mais o mercado se fortalece e se consolida.
O Brasil precisa enxergar o nosso Estado com outros olhos. E os nossos artistas precisam acreditar que é possível, sim, fazer um trabalho a nível nacional. Temos capacidade para isso!
Sem dormir no ponto
Uma das estratégias dos amigos, que formaram a dupla em Santa Maria, para ganhar destaque foi em setembro de 2019. Naquele mês, eles passaram a ser empresariados por Léo dos Reis, que já foi responsável pela carreira de outros grandes nomes do mercado, como João Carreiro, Capataz e Zé Neto & Cristiano.
Quanto mais duplas, mais cantores, mais profissionais trabalhando, mais o mercado se fortalece e se consolida
SANDRO
Além disso, a parceria com Mirella ajudou a dupla a ganhar destaque fora daqui. Isso, também aliado ao tema do clipe, que fala sobre a adoção responsável de animais. Aliás, o cachorro de Sandro, Paçoca, que foi adotado, é a estrela do vídeo.
— Sabíamos que a participação dela seria algo inesperado por quem já conhece nosso trabalho. Achamos que essa inovação, junto com o tema adoção responsável de animais abandonados, foram os grandes responsáveis por esse bom resultado — afirma Sandro.
Com o segredo do sucesso nas mãos, a dupla, que gravou o seu mais recente DVD no Teatro Treze de Maio, em Santa Maria, em 2017, lançado pela Sony Music, não dormiu no ponto. Para gravar a faixa Nosso Love É Top (com mais de 500 mil visualizações no YouTube), os parceiros chamaram a dupla Diego & Victor Hugo.
Coisa nossa
Fazendo coro a Rodrigo Ferrari, Sandro também acredita que um dos principais motivos do sucesso dos sertanejos locais é investir no repertório próprio.
— Quando começamos a nos apresentar juntos, em 2009, cantávamos covers de outros artistas. Hoje, estamos realizando um dos nossos maiores sonhos, que é o de tocar nos shows as nossas próprias músicas e ainda ter o público cantando com a gente e até fazendo coreografias — comemora o resultado de muito trabalho nos bastidores.
"O músico gaúcho não acordou desse apagão"
Um dos nomes mais representativos do tradicionalismo gaúcho, César Oliveira, que faz dupla com Rogério Melo, não faz críticas ao predomínio da música sertaneja por aqui. Para ele, a dificuldade do músico nativista gaúcho em lidar com mudanças e novidades não vem de hoje.
— Esse apagão aconteceu quando o LP sumiu, e surgiu o CD (no começo dos anos 1990). Mas, ali, ainda um pouco menos, pois o artista ainda tinha um disco físico, palpável, para entregar ao seu público. Com o fim do CD e com o surgimento das plataformas digitais, esse apagão aumentou. E o músico gaúcho (nativista) ainda não acordou desse apagão — declara, sem papas na língua.
Para César, esse tem sido um baita divisor de águas:
— Os nossos artistas, sem a gravadora, que fazia tudo para eles, ficaram desamparados. Tenho uma coleção de 5 mil discos na palma da minha mão (nos aplicativos de música). O sertanejo usa toda essa informação a seu favor, eles estão apenas fazendo o seu trabalho.
Mais alegria
O ativista cultural defende, ainda, que os artistas nativistas precisam cativar a gurizada, produzindo canções com que essa turma possa se divertir.
— Hoje, o jovem vai numa festa de 15 anos e quer ouvir o quê? Algo alegre, pra cima, que é a música sertaneja — argumenta:
— A nossa música perdeu a característica de ser aprazível e alegre. Antes, nossas canções tinham conteúdo, mas também tinham alegria, éramos nutridos pela felicidade. Temos que ser atrativos ao povo.