Por Vitor Necchi e Bruno Ibaldo
Jornalista, escritor e doutorando em Letras (UFRGS)/Jornalista e diretor de arte
A orquestra toca em dinâmica fortíssima no fosso. A crina dos arcos verga ao pressionar com vigor as cordas dos violinos. Os tímpanos rufam na mesma intensidade. Os metais, feito trombetas apocalípticas, anunciam o que virá, um desafio aparentemente insuperável: sobre os 115 músicos eufóricos, uma voz deve soar mais alto, e assim ocorre – é Jessye Norman, que em poucos segundos protagoniza um dos maiores momentos da história da ópera. Então ela canta, em rompante, no original alemão:
“Ó grandioso milagre! Gloriosa donzela!
Tu me trazes o verdadeiro e mais santo bálsamo!
Por ele a quem amamos eu salvarei o amado:
que minha recompensa um dia sorria para você!
Adeus! A angústia de Sieglinde te abençoe!
Essa é uma das cenas do último ato da ópera As Valquírias (Die Walküre), de Richard Wagner, em montagem de 1989, regência de James Levine. E foi o vídeo da interpretação descrita acima que o Metropolitan Opera House (Met), a maior casa de óperas das Américas, em Nova York, publicou em seu canal no YouTube para homenagear Jessye Norman na ocasião de sua morte, ocorrida na última segunda-feira (30). Conforme o comunicado divulgado pela família, ela teve um choque séptico seguido de falência múltipla dos órgãos. O agravamento da situação decorreu das complicações de uma lesão medular sofrida em 2015.
A notícia repercutiu rapidamente na imprensa, e não poderia ser diferente. Norman é uma gigante; sua voz, um colosso; sua performance, exuberante. Sua classificação como soprano não passa de uma formalidade. Na prática, ela era o que quisesse ser.
Não lhe faltavam notas, das mais graves às mais agudas, nem perdia a afinação e a delicadeza próprias de cada desafio. Cantava o repertório de soprano, de mezzo-soprano, de contralto e até de um registro tipicamente masculino, tenor (ainda que transposto uma oitava acima, como no caso do Sanctus, de Gounod). E isso, que era raro – para não dizer inédito –, acrescido à sua elevada carga dramática, à expressividade e ao controle que mantinha sobre seu repertório, fizeram de Norman um fenômeno da ópera e, por extensão, da música. Dona de um timbre inconfundível, ainda tinha uma extensão vocal imensa.
A morte de Jessye Norman ecoa uma comparação inevitável. Há 42 anos, quando Maria Callas faleceu também em setembro, no dia 16, a soprano espanhola Victoria de los Ángeles disse: “Algo muito, muito importante se foi, para o mundo da música, para a arte”. Aconteceu o mesmo nesta semana. Quando Callas morreu em 1977, o mundo perdeu um pilar. No último dia 30, outro.
Hans von Bülow, regente, pianista e compositor alemão, cunhou dois marcos da literatura pianística. Para ele, o Cravo Bem Temperado, de Bach, era o Velho Testamento, e as sonatas para piano de Beethoven, o Novo. Não é exagero usar a mesma analogia para compor a história do canto lírico: se Maria Callas é o Velho Testamento, Jessye Norman tem de ser o Novo. Cada uma se tornou referência de interpretação dentro do seu universo. Tosca é a personagem de Puccini que Callas ensinou a fazer, e Sieglinde é a heroína de Wagner que Norman ensinou a admirar. Não por menos, acaloradas e intransponíveis discussões sobre qual seria a maior cantora lírica do século 20 oscilam com frequência entre as duas divas.
O repertório de Norman atravessa quatro séculos da história da música, começando no período barroco e chegando ao moderno. Além das óperas de Wagner, cumpriu papéis de Beethoven, Berlioz, Gluck, Mozart, Strauss e Verdi. Também cantou, entre outros, de Berg, Brahms, Debussy, Mahler, Ravel, Schubert e Schumann.
O espectro erudito não impediu que ela fizesse incursões vigorosas, sem parecer uma intrusa, pelo jazz (gravou um álbum celebradíssimo com o pianista e compositor Michel Legrand) e por canções populares. A começar, ainda na infância, pelos spirituals, temas que oscilam da alegria à dor, passando pela exultação da fé, pequenas maravilhas criadas por negros de um país fraturado pela escravização e pelo preconceito.
Jessye Mae Norman nasceu na Geórgia, em 15 de setembro de 1945. Em sua família, encontrou as primeiras referências musicais com artistas amadores: o pai cantava, e a mãe e o avô materno tocavam piano. A família frequentava a Igreja Batista do bairro, onde a menina, aos quatro anos, se destacou cantando. Graças a uma bolsa integral, estudou música na Universidade Howard, de Washington. Depois continuou sua formação no Conservatório Peabody, em Baltimore, e na Universidade de Michigan. Um episódio determinante para sua trajetória ocorreu em 1968, quando venceu o International Music Competition, concurso realizado em Munique, na Alemanha, que desde 1952 identifica e projeta jovens talentos.
Sua estreia profissional ocorreu no palco na Ópera Alemã de Berlim, em 1969, quando interpretou a Elisabeth de Tannhäuser, de Wagner. Nos anos 1970, fixou-se na Europa, cumprindo intensa agenda de óperas e recitais. Após a consagração no Velho Mundo, estreou nos Estados Unidos em 1982, na Companhia de Ópera da Filadélfia. Em 1983, triunfou no Metropolitan Opera House como a Cassandra, de Os Troianos (Les Troyens), de Hector Berlioz. Depois disso, cantou em mais de 80 performances com a companhia. Uma reverenciada wagneriana, na casa imortalizou interpretações em Tannhäuser, As Valquírias e Parsifal.
Não foram poucas as honrarias e celebrações que ela ganhou, entre eles quatro Grammys. Na França, era tão celebrada que, inclusive, teve uma orquídea batizada com seu nome. Foi lá também que protagonizou um feito e tanto. Em 1989, no bicentenário da Revolução Francesa, o ápice das comemorações oficiais ocorreu na Praça da Concórdia. Anunciada por clarins e pelo rufar de taróis, sua imponente figura surgiu iluminada por holofotes que destacavam suas vestes, criação do estilista tunisiano Azzedine Alaïa reproduzindo o azul, o branco e o vermelho da bandeira. Então sua voz rompeu o silêncio. Na data máxima da França, foi uma negra americana que cantou La Marseillaise.
Houve outros feitos em sua carreira. Cantou na posse de dois presidentes dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1985, e Bill Clinton, em 1997. Nos 60 anos da rainha Elizabeth 2ª, da Inglaterra, em 1986. Na celebração dos 70 anos de Nelson Mandela, em 1988, quando ela cantou a cappella Amazing Grace para um lotado e silenciado Estádio de Wembley. Na abertura dos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta. Na cerimônia pelas vítimas do 11 de setembro, em 2002. Norman sempre defendeu a diversidade e teve uma intensa atuação no engajamento a obras sociais e humanitárias.
Se a realidade é desafiada pela impermanência, Norman projetou para a posteridade um conjunto de registros lendários. Como pensar em Liebestod, ária que encerra Tristão e Isolda, de Wagner, sem associá-la à interpretação de Norman durante a edição de 1987 do Festival de Salzburgo, com Herbert von Karajan conduzindo a Filarmônica de Viena nesta performance que originou um dos discos mais importantes do monumental catálogo da gravadora Deutsche Grammophon.
Também não há como deixar de citar Norman ao se tratar de as Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder), de Richard Strauss, que ela gravou em 1983 com a Orquestra Gewandhaus de Leipzig, regência de Kurt Masur. É curioso observar que, embora Norman tenha registros impressionantes do lamento final de Isolda, nunca enfrentou a gravação completa da ópera.
Da obra de Mahler, Norman fez gravações marcantes da Sinfonia Nº 2, onde no quarto movimento o compositor musicou Urlicht ("A luz primordial", em tradução), uma canção popular da Idade Média. Norman gravou uma versão para piano e voz, um tanto incomum por se tratar de um movimento de sinfonia que, a rigor, exige orquestra. Por ser um registro intimista, a cantora se faz ouvir mais de perto, sofrendo: Je lieber möcht' ich im Himmel sein ("Como eu gostaria de estar no céu").
Ao contrário do usual, Norman não interrompe a linha melódica para recuperar o ar, assim como um pássaro não suspende o voo sobre os campos por causa das cercas.
Como eu gostaria de estar no céu.
Eu vim por um largo caminho:
Um anjinho apareceu e queria me afastar.
Ah não! Eu não me deixarei ser afastado!
Eu sou de Deus e retornarei a Deus!
O amável Deus vai me garantir um pouco de luz,
Que me iluminará para a abençoada vida eterna!
Jessye Norman morreu na véspera do Dia Internacional da Música.