É curioso pensar que, em um momento de tensões e deformações que parece não ter precedentes na história nacional, uma das artistas que historicamente mais reflete sobre as questões do país escolha um show de 1987 para trazer de volta aos palcos – e justamente como forma de estudo sobre o fazer artístico do Brasil.
Para Adriana Calcanhotto, que volta a Porto Alegre para apresentar A Mulher do Pau Brasil hoje, no Teatro do Bourbon Country, há pontos que conectam a realidade atual à de 31 anos atrás, quando o show foi inaugurado na capital gaúcha – terra natal da cantora.
– Acho que sempre é importante olhar para trás para se aprender com a história. Em momentos como este, com o Brasil tão polarizado, não se reconhecendo, é ainda mais importante. As ideias modernistas, da poesia Pau-Brasil e a Tropicália são movimentos de identidade. Nesta hora, fica mais importante ainda pensar o Brasil por essas lentes – diz a cantora, em entrevista por e-mail.
A nova versão de A Mulher do Pau Brasil – assim, sem hífen – surgiu durante os dois anos em que Adriana passou em residência artística na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde estudou e deu aulas. Criado no ano passado, para o que seria a conclusão do período na Europa, acabou sendo transformado em turnê pelo Brasil – e a estada em Portugal deve se alongar, já que a cantora voltará à universidade no ano que vem para mais um semestre.
– Mais do que ajudar na composição do show, meu trabalho de estudo de literatura e história do Brasil me ajudou muito a olhar para a minha trajetória e entender que muitas coisas que pareciam disparatadas, que pareciam coisas diferentes, eram a mesma coisa. No fundo, eram todas da mesma matéria-prima com que eu trabalho – reflete.
Como na primeira versão, o show não surge para divulgar qualquer trabalho – em 1987, Adriana ainda não tinha nenhum disco gravado. No repertório, tocado ao lado dos músicos Bem Gil (filho de Gilberto Gil) e Bruno Di Lullo, que se alternam entre guitarra, piano, baixo e programação, são tocados alguns de seus sucessos, como Esquadros e Inverno. Há um bloco dedicado a poemas musicados, com Gregório de Matos, Alberto Caeiro e Emily Dickinson, e uma sessão de músicas alegres, característica do "humor oswaldiano nacional" pescado pela cantora, fechando com uma versão dançante de Eu Sou Terrível, de Roberto e Erasmo, que abria o show de 1987.
Entre esses momentos, são apresentadas canções que ajudam a definir o DNA nacional de um país com mazelas e orgulhos. Em relação à turnê feita em Portugal no ano passado, entraram Geleia Geral, de Gilberto Gil (que estava no setlist da primeira apresentação, em 1987), Nenhum Futuro, de João Bosco e Francisco Bosco, e O Cu do Mundo, de Caetano Veloso. Em determinado momento, um dos mais fortes do show, a cantora interpreta As Caravanas, faixa do mais recente trabalho de Chico Buarque que versa sobre frequentadores "ordeiros e virtuosos" que frequentam as praias cariocas e pedem para a "polícia despachar de volta o populacho pra favela" – segundo a cantora, "um pouco da história do Brasil contada pelo Chico em dois minutos e tantos segundos":
– Apresentar o show no Brasil é diferente de apresentar em Portugal. Fora a mudança específica de canções, tem alguns códigos e sutilezas que só mesmo quem é brasileiro pode compreender.
Mais do que um bom resumo do cancioneiro nacional em uma das vozes mais talentosas do país, A Mulher do Pau Brasil surge como uma oportunidade rara de reinterpretar o Brasil em "uma hora e tantos minutos".
Adriana Calcanhotto
Hoje, às 21h.
Teatro do Bourbon Country (Av. Túlio de Rose, 80)
Ingressos: R$ 80 (galeria), R$ 100 (mezanino), R$ 140 (plateia alta) e R$ 160 (plateia baixa). Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante (limitado a cem ingressos e 10% para os demais)
Pontos de venda: bilheteria do teatro (sem taxa) ou pelo site uhuu.com.br (com cobrança de taxa).