O que é um artista, se não um tradutor de sentimentos, angústias e afetos humanos? Se a isso soma-se a capacidade de captar o espírito de um momento ou de um espaço, é possível dizer que Camila Toledo é uma das maiores artistas de Porto Alegre na atualidade.
Porque poucos músicos conseguem reunir em torno de si tantos elementos pulsantes e urgentes da Capital: da incursão recente no jazz por bandas jovens aos gritos por representatividade de gênero e cor, Camila Toledo trafega por pautas contemporâneas com a naturalidade de quem possui uma antena privilegiada para captar o que está no ar.
Neste sábado, no London Pub & Bistro (Rua José do Patrocínio 964), a porto-alegrense de 34 anos – que desde 2014 lidera a Motherfunky, banda de baile com repertório de funk e groove, e apresenta regularmente um show com canções de Billie Holiday – leva ao palco o que talvez seja o maior exemplo dessa capacidade: no novo show Camila e a Ponte, reúne canções de nomes aparentemente tão opostos quanto Ludmilla e Leci Brandão, passando por Ella Fitzgerald e Nina Simone. Opostos para o repórter homem e branco, pelo menos:
– Engraçado, não acho tão distantes – avalia Camila, para logo explicar o que norteia sua escolha de repertório. – São todas artistas que compartilham da mesma invisibilidade artística e social. Embora tenhamos grandes cantoras negras brasileiras, nenhuma teve o mesmo sucesso de suas contemporâneas brancas.
O novo show, que estreou em abril e foi retomado nesta semana, durante a Mostra Jazz, em Novo Hamburgo, tem no palco Fernando Spillari (piano), Gabriel Nunes (baixo) e Dado Silveira (bateria) e chega à terceira apresentação com um propósito claro: apresentar uma linha do tempo da música de matriz negra feita por mulheres no Brasil e relacioná-la às intérpretes norte-americanas de jazz que serviram de referência para a jovem Camila em início de carreira:
– Isso começou a chamar a minha atenção depois de adulta. Minhas grandes inspirações eram Gloria Gaynor, Diana Ross, Tina Turner, Esperanza Spalding. Por que eu não tenho referências de divas brasileiras negras? Quando me dediquei a este show, quis criar uma ponte, como diz o nome, entre o que eu sempre tive como referência e as mulheres que construíram o caminho da música negra no Brasil. E percebi que é muito fácil, porque são artistas que conversam entre si pela ancestralidade.
Não à toa, o trabalho de Camila tem quase função aglutinadora: além do palco, a cantora idealizou o Festival Nós Outras, que já realizou duas edições exclusivamente com artistas mulheres. Esse tipo de ação, comenta Camila, é um retrato da atual geração, que sempre se viu mais representada por figuras estrangeiras do que nacionais, cansou de esperar um movimento de integração social voluntário e resolveu fazer, na marra, eventos que a incluíssem. O novo show é também uma reação a isso.
– O Brasil tem problemas de representatividade, e sinto que o jovem brasileiro negro sempre se viu mais representado pelo rap e pelo funk americanos, pelos jogadores da NBA e pela cultura racial estrangeira do que pelas coisas locais. Se não tem nada aqui, vou comprar o que vem de lá – avalia, para em seguida traçar um panorama da revolução causada pela chamada "geração tombamento", jovens de minorias sociais empoderados que tomam o protagonismo para si:
– Se formos pensar na juventude negra atual, as festas a que eles vão, as pessoas que eles seguem no Instagram, os ícones em que eles se inspiram para montar o look, é fácil perceber que está se criando uma estética própria.
A divulgação do trabalho de Camila também se dá em termos atuais: sem discos lançados, a cantora publica vídeos em seu canal no YouTube. Com Camila e a Ponte, a ideia é que a regularidade se intensifique, com vídeos de apresentações ao vivo.
Show Camila e a Ponte
Sábado, às 22h.
London Pub & Bistro (Rua José do Patrocínio, 964).
Ingressos: R$ 20, à venda no local.
O espetáculo: Camila Toledo canta músicas de cantoras negras brasileiras como Leci Brandão, Dona Ivone Lara, Liniker e Ludmilla em formato de show de jazz. O repertório inclui ainda divas do jazz norte-americano, como Ella Fitzgerald e Nina Simone.