Reconhecido como uma das principais vozes do rap nacional contemporâneo, o rapper Rashid lançou na última sexta-feira (19) o seu segundo álbum de estúdio, Crise. Com 10 anos de carreira completados em 2017, o MC paulistano que cresceu no bairro Lauzane, zona norte de São Paulo, berço do também rapper e amigo Projota, surgiu para a cena rap com o EP Hora de Acordar (2010). Na sequência, produziu três mixtapes: Dádiva e Dívida (2011), Que Assim Seja (2012) e Confundindo Sábios (2013), destacando-se pelo flow e lírica que apresentava. Em 2016, nasceu o seu primeiro disco de estúdio, o elogiado A Coragem da Luz, costurado por "love raps" e músicas de guerra que escancaram a versatilidade temática e rítmica do cantor.
Em seu novo trabalho, uma figura cabisbaixa sentada em um trono real ilustra a capa do álbum, disponível na maioria das plataformas de streaming. Segundo o artista, o conceito empregado tem o objetivo de versar sobre as crises humanas, muitas delas fruto do bombardeio de informações que pressionam constantemente as pessoas, além de salientar que problemas e dificuldades são enfrentados até mesmo quando se está em uma posição de destaque.
Crise reúne oito singles lançados dentro da proposta contínua Em Construção, projeto de álbum-serial em que o artista foi soltando músicas inéditas ao longo de 2017. Junto aos singles, duas novas faixas compõem o tracklist final do CD. De acordo com o rapper, o disco é um case experimental que, construído a longo prazo, tem o objetivo de deixar o artista constantemente no radar do público.
Em conversa com GaúchaZH, o músico disserta sobre como foi a produção do novo lançamento, as inspirações e medos que o ajudaram na composição do disco, a aparente união artística no cenário atual da cena hip hop e a importância de os músicos “não ficarem mornos” e exporem suas opiniões políticas em um ano de eleição presidencial no país.
O título do seu novo álbum é Crise, e na capa você está sentado em um trono com uma expressão cabisbaixa. Até que ponto a crise a que você se refere vai além da realidade política e coletiva do país e se direciona a algum aspecto pessoal?
O disco inteiro é uma metáfora sobre o quanto a crise econômica e política do país, e na realidade uma crise humana geral no mundo, não reflete na gente e o quanto isso não se torna uma crise pessoal para cada um de nós. As músicas são exatamente assim, uma meio que contraria a outra. Tenho uma faixa em que estou muito confiante, em outra estou totalmente inseguro. Em uma estou no ápice de um relacionamento super legal, na outra ele acabou. Elas vão se contrariando. Essa seria uma crise pessoal, que é algo normal que todo mundo passa. Eu quis fazer isso de propósito em um disco só, em que isso ficasse muito nítido, que a cabeça da pessoa vai de uma ponta a outra em algumas horas. Quero que as pessoas entendam que não são exatamente dois lados da moeda, não é o bem e o mal. Na verdade, é a mesma coisa junto e misturado. Está bem e não está tão bem assim. É um equilíbrio, como a vida de todo mundo é. Às vezes a gente vê isso como uma crise, às vezes é um caminho natural.
Quando você teve a ideia de lançar o disco aos poucos, como parte do projeto Em Construção?
A ideia surgiu no final de 2016, quando soltei Primeira Diss, que inclusive já é uma música em que falo mal de mim mesmo. Isso já denota bastante o tom de crise da coisa. Aí a gente teve a ideia de fazer um experimento. Eu tinha acabado de lançar o álbum A Coragem da Luz (2016), que é todo tradicionalzinho em seu formato: você lança dois singles, depois o disco, depois trabalha mais algum single com clipe. A gente quis subverter essa ordem e fazer um experimento de mercado, uma coisa próxima do que os artistas de funk e sertanejo fazem. E o lance de deixar algumas músicas inéditas é para que quem acompanhou do começo ao fim também tivesse uma surpresa quando chegasse na hora do lançamento do aglomerado.
Inclusive a ordem de lançamento dos singles não seguiu o ordenamento das faixas no disco...
Exatamente, porque também tinha o desafio de como a gente ia conseguir construir um lance que tivesse um conceito e ao mesmo tempo não deixar esse disco ser conceitual demais, não ficar muito lado B. Fazer com que as músicas ficassem legais e atrativas para o público. Então a gente foi lançando em uma ordem em que as músicas iam ficando prontas. E a ideia era realmente não lançar na ordem para que, quando a gente passasse o conceito da parada, as pessoas tivessem aquele estalo, que fosse meio que aquela surpresa no final do filme.
Em Se Tudo Der Errado Amanhã você fala "o meu medo não é perder o que conquistei, mas perder o que tinha antes de começar". O que você tinha antes de começar que teme perder?
Essa fome, paixão por fazer música, por tentar ser melhor sempre, sabe? Acho que é a coisa mais importante. Essa vontade de fazer as coisas serem maiores e melhores e cada vez mais bem feitas, mais bonitas, e alcançar mais gente. Acho que o medo de chegar num ponto e falar "aqui tá bom?". A partir do ponto que você chega no "aqui tá bom", aí é só queda, né? Não dá para subir mais. O medo maior é sempre chegar nessa zona de conforto. É isso que eu não quero.
Aparentemente, nos últimos tempos os artistas da cena hip hop estão mais unidos, deixando brigas internas e focando no crescimento conjunto do rap. Qual a sua avaliação sobre o momento atual?
Ainda existem brigas, rixas e tudo mais. Artista que não gosta do outro, que faz música falando mal, mas muitos acordaram mesmo para o lado da indústria, lado mercadológico da cena rap. Então acaba sendo mais interessante estar todo mundo aliado do que brigando, cada um no seu canto. Acho que isso é um lado positivo, por mais que as pessoas possam olhar e ver a questão do interesse, tipo: "mas cara vai colar com o outro só por interesse?". Mas não é isso. Tem duas coisas nesse meio que a gente pode enxergar de positivo: que ele acordou para o potencial que o rap tem dentro da indústria; e, segundo, que ele enxergou realmente que a união é mais positiva para que a gente cresça no mercado da música brasileira do que a nossa separação. Então tá suave. Acredito que, se a gente for buscar na história do rap, acho que nos últimos anos são os tempos que mais apareceram artistas de rap na cena da música brasileira. Então isso quer dizer alguma coisa, é um indício positivo desse tipo de visão.
No novo disco você expõe algumas opiniões acerca do atual cenário político brasileiro, exemplo da faixa Mal Com o Mundo. Em um 2018 tão relevante politicamente para o país, com eleição presidencial no final do ano, qual a importância de os rappers falarem abertamente sobre suas preferências e constatações políticas?
Acho que, num momento tão fervoroso, a gente não pode ser morno, tá ligado? A gente tem que tomar as rédeas mesmo. Tem um monte de gente ouvindo o que a gente fala, inclusive muita gente discorda dentro do rap. Se você olhar essas nossas músicas mais políticas, vai ver um monte de discussão no YouTube, nos comentários. Gente que concorda, que discorda, cada um defendendo o seu lado. Mas, no final das contas, isso acaba fazendo um lance que é muito necessário, que é levantar um debate, a gente colocar as pessoas para dialogar, trocar ideia. Obviamente tem que parar aí, tem de começar um debate e terminar uma discussão de forma racional. Acho que não pode passar muito disso, a intenção não é criar briga para ninguém, já bastam as notícias, as coisas absurdas que a gente vê, ouve e lê por aí do que alguns caras andam fazendo. Temos que expor nossa opinião até onde a gente acha cabível dentro das músicas, porque um artista não pode ser visto como um político, não pode chegar a ponto de você sair na rua e as pessoas começarem a te cobrar coisas que deveriam ser cobradas dos políticos. O rap sempre sofreu um pouco disso, as pessoas esperam que o rapper, o MC, a MC, fale coisas conscientes e políticas. Acho que isso é importante, mas não pode ser visto como obrigatório também. A gente tem que dar nossa opinião até onde a gente acha cabível, ficar atento e ser informado. Acho importante e relevante pessoas que têm voz falarem. Não necessariamente fazer campanha para ninguém, não acho que isso é o relevante, acho que a parada mais importante é você expor situações para que as pessoas ao menos enxerguem as coisas, e, a partir desse momento, a pessoa tem de trilhar o caminho meio que sozinha. Ao menos você expôs um caminho para ela, mostrou que tem uma porta aberta ali que ela pode ir.
Acho que, num momento tão fervoroso, a gente não pode ser morno, tá ligado? A gente tem que tomar as rédeas mesmo.
RAPPER RASHID
Em 2017 você anunciou que estava escrevendo um livro. Há previsão de lançamento? Ele já tem título, pode adiantar algo sobre o que ele vai tratar?
Eu quero lançar de preferência ainda nesse primeiro trimestre, mas tudo vai depender do disco, porque, se a agenda complicar demais, a gente vai acabar demorando um pouco a mais do que o esperado. Está tudo certo, a gente está terminando a capa e aí vai para a parte da fabricação mesmo. Ele já tem nome, Ideias que Rimam Mais que Palavras. O livro é um primeiro volume contando as histórias que me fizeram escrever determinadas músicas. Desde o começo da carreira até Gratidão, que foi lançada no início de 2015. Porque as pessoas sabem, às vezes têm a explicação de uma rima e outra, mas muita gente não sabe das histórias pessoais de verdade que levaram a gente a escrever tal coisa, ou alguma rima que a pessoa considere forte, tenha curiosidade de saber o que eu estava sentindo quando escrevi aquilo. O livro basicamente vai nesse caminho aí.
Ouça Primeira Diss, single lançado em 2016 que iniciou o projeto Em Construção: