Cheio de orgulho, Caetano Veloso sintetiza o resultado do espetáculo que apresenta nesta terça-feira (19) em Porto Alegre com os filhos Moreno, Zeca e Tom: "Divino". Em entrevista a ZH, o cantor e compositor explica que o projeto começou a tomar forma há três anos e que o fato de viver "grudado" nos filhos foi combustível para as agendas serem organizadas e, o sonho, enfim, realizado.
Como muitos pais, Caetano também tem a percepção de que os anos passam rápido. Moreno, por exemplo, que era posto pra ninar com O Leãozinho, hoje faz seus filhos dormirem ao som dos versos do avô. O clã Veloso representa em diferentes gerações múltiplas vivências, gostos e descobertas musicais que se retroalimentam, destaca Caetano. Combinam da paixão por sambas e boleros ao pop experimental, do jazz e bossa nova às experiências com a música eletrônica. São, ao mesmo tempo, universais e umbilicalmente ligados ao seminal Recôncavo Baiano, onde está encravada a cidade de Santo Amaro, ponto de partida das histórias que serão lembradas hoje no palco do Araújo Vianna.
Repito a você a mesma pergunta que fiz a Gilberto Gil, semanas atrás, sobre o trabalho dele com o Bem Gil. Trabalhar com os filhos é um caminho natural para seguir adiante com o legado musical criado por vocês?
Há uns três anos que sonho em fazer um show com meus filhos. Eu tinha feito um com Moreno, numa série chamada Pais e Filhos, e tinha ficado muito feliz. Zeca e Tom foram crescendo e lidando cada vez mais com música, aí eu comecei a querer fazer com os três. Primeiro, Tom não podia, por causa da (banda) Dônica, e Zeca, que foi o único com quem falei, não queria. No começo deste ano, Zeca me disse que tinha mudado de ideia e que aceitaria fazer. Falei com Moreno, que topou. E Tom, já com a agenda da Dônica organizada, pôde. Paulinha (Lavigne, mãe de Zeca e Tom) primeiro resistia. Depois embarcou. Assim começamos a ensaiar. Para mim é uma felicidade enorme estar com eles. Sempre fui grudado nos filhos e poder estar com eles também nos palcos e viagens me enche de alegria. As famílias de Gil, Djavan, Pepeu são famílias musicais. Acho que nosso caso é diferente. Bem, tem que ter alguma musicalidade para fazer show, mas penso que, com minhas limitações na área (que é superada por cada um dos meus filhos em diferentes aspectos), sermos família, sermos essas pessoas que somos, conta mais do que a música. Tive angústia quando vi que ia mesmo acontecer, mas ganhei coragem, e o resultado é, para mim, divino.
Tem um vídeo no YouTube que mostra Moreno cantando com você, em 1982, Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê. Olhando para Moreno ao seu lado no palco hoje, você tem aquela percepção, comum a muitos pais, de que os filhos crescem muito rápido?
Não só olhando para Moreno: olhando para Zeca, para Tom também. Aliás, no Canto de Afoxé é Tom quem refaz, no show, a voz infantil de Moreno. Rosa, filha de Moreno, já está com 11 anos – e José, meu outro neto, com 8. Tudo isso parece incrível, pois na minha cabeça os três ainda eram crianças há muito pouco tempo. Mas dá uma sensação de exaltação, como na visão de um milagre.
A música O Leãozinho, de seu disco Bicho (1977), é uma canção muito presente no repertório afetivo de pais e filhos e ganha constantes releituras de projetos musicais para crianças. Como foi para Moreno, Zeca e Tom crescerem ouvindo essa canção pela fonte original?
Moreno, a quem pedi que cantasse O Leãozinho, fala disso no show. Os três a ouvem desde crianças, mas Moreno ressalta que eles não nascem sabendo todas as minhas músicas. Quando eu fiz essa canção, Moreno, que era pequeno, ouviu a música nova e perguntou se era pra ele. Eu disse que não, que era pro Dadi (músico do grupo A Cor do Som e do projeto Tribalistas). Mas hoje ele a canta para ninar os filhos dele, como eu cantava para niná-lo.
Você, Moreno e Zeca e Tom representam três gerações que, presumo, estabeleceram relações distintas com a música, da criação ao consumo, do analógico ao digital. Vocês costumam compartilhar gostos e descobertas?
Com Moreno, foram décadas de sugestões e comentários. Na puberdade ele adorava a Legião, sabia aquelas músicas longas de cor. Depois foi mudando. Mas já tinha intimidade com muita coisa velha que eu cantava pra ele dormir. Eu tinha muitos LPs de música brasileira, americana, argentina, mexicana e cubana, e ele, depois que me separei da mãe dele, passou a explorar esses universos. Sempre vinha comentar comigo alguma coisa que o impressionasse mais. Sabe mais boleros gravados por Elvira Ríos do que eu fui capaz de aprender. Depois me mostrou novidades como Buika, cantores japoneses, velhos sambas de Assis Valente que eu não conhecia. Zeca pedia que, para niná-lo, eu cantasse mais certas canções do que outras. Depois teve uma fase Racionais (sabia aqueles longos raps de cor) e logo estava lidando com música eletrônica. Aos 17, fingia ter 18 para tocar nos lugares. Finalmente, começou a compor canções lindíssimas e cheias de um sentimento só dele, e a me mostrar novidades como James Blake ou um disco novo de Björk com faixas produzidas por Arka. Além disso, se emocionava com algumas coisas da tradição brasileira que eu lhe mostrava. Nunca me esqueço de quando ele ficou comovido ao ouvir Último Desejo com Aracy de Almeida e como ficou entusiasmado com Café Soçaite cantada por Jorge Veiga. Já Tom, quando pequenininho, não gostava de música. Nem queria que eu cantasse pra ele dormir. Foi crescendo e, depois de passar a gostar de bem escolhidas canções que eu fazia numa turnê de voz e violão, começou a aprender a tocar com Cezar Mendes, meu amigo e parceiro, santamarense como eu e grande violonista. Terminou mostrando-se o mais musical de nós quatro. Na escola, ficou amigo desses meninos que vinham com ele à minha casa e que tocavam piano e violão muito bem. Tinham por volta de 16 anos. Turma impressionante. Isso virou a Dônica. E Tom passou a me mostrar gravações progressivas dos Mutantes e do Gentle Giant. Tudo isso sem deixar de ouvir João Gilberto e Ella Fitzgerald, que Cezinha mostrou a ele, e ele se apaixonou.
O que você destaca como particularidades, musicais e pessoais, únicas de Moreno, de Zeca e de Tom, que, somadas, se refletem no trabalho conjunto de vocês?
São muito diferentes. Mas a química é muito boa entre eles. Moreno fala com grande clareza e velocidade de raciocínio.
E é o meu primeiro. Faz música com delicadeza e cuidado, sem pretensão descabida e com funda espiritualidade. Cuida dos sons com carinho. Zeca é muito reflexivo. Pensa no meio das frases, busca as palavras adequadas, sente-se atraído por ideias complexas. Faz música cheia de sentimento e exige de si mesmo veracidade total na expressão. Isso diz respeito tanto à composição quanto ao canto e ao tratamento técnico. Tom é de frases curtas. Traz à conversa apenas as conclusões a que chega. Muito direto. E, na música, muito exuberante, com instinto de improvisação e de contraponto. Moreno faz os outros dois rirem e tira muito sarro deles. E de mim. Todos são carinhosos. Moreno adora a Bahia, Tom, o Rio, e Zeca, que ama essas cidades também, tem, como eu, fascinação por lugares desconhecidos e é o que mais saca São Paulo. Gozado é que meu show com eles me levou para mais perto do Recôncavo Baiano do que nunca.