Caco Coelho é tão fascinado por Nelson Rodrigues (1912-1980) que dedicou 25 de seus 62 anos (completados nesta segunda-feira) à realização de uma monumental pesquisa sobre ele. Nesse percurso, editou sete títulos sobre o escritor e se envolveu com pelo menos 20 espetáculos de textos dele. O resultado de todo esse esforço é o livro Dossiê Rodrigues – A Genealogia (1900-1934), que será lançado nesta segunda-feira (18), das 17h30min às 20h30min, no Centro Cultural da UFRGS, em Porto Alegre (leia mais no quadro ao final da entrevista).
Com 1.107 páginas, o volume procura mostrar como a família Rodrigues criou uma linguagem genuinamente brasileira. Foi o próprio Nelson quem indicou o caminho. "Eu não seria o que sou, não teria escrito uma frase, uma linha, uma peça, se não fosse filho de Mario Rodrigues", anotou sobre o pai, um dos principais jornalistas brasileiros do início do século 20. Não é por acaso que o jornal, meio por onde passaram vários dos Rodrigues, é personagem central nessa história. Dossiê Rodrigues contextualiza a saga da família em meio aos acontecimentos do Brasil para revelar como se originou a "estética rodriguiana".
Leia, a seguir, entrevista com Caco Coelho.
"Estamos falando de um gigante que se tornou um clássico"
Por que você ficou tão fascinado com Nelson Rodrigues a ponto de dedicar uma vida a sua obra?
Me incomodava profundamente a afirmação de que o Nelson Rodrigues — quiçá o maior escritor brasileiro — tivesse se interessado pela arte porque viu uma fila na frente de um teatro e, querendo ganhar uma graninha, escreveu um dos maiores clássicos da humanidade, Vestido de Noiva. Eu achava que, por trás disso, havia todo um boicote à arte de um modo geral, uma blague levada a sério que divertia as pessoas. O que me interessava era buscar o que estava escondido por traz dessa blague.
Eu e o Antônio Abujamra (ator, diretor e apresentador) tínhamos criado uma companhia de teatro, os Fodidos Privilegiados. Um dia, lembrei que um amigo meu tinha visto, em Nova York, um espetáculo com o compêndio de todas as peças do Shakespeare. Pensei: "Por que não fazer isto com o nosso maior dramaturgo?" Um dos diretores, o Tanah Corrêa, lembrou que a família não permitia montar as peças se não fosse o texto integral. Então, o Abu propôs: "Por que não vamos atrás do que existe além do teatro?". Localizamos de uma feita todos os inéditos em livro.
Criamos, eu e o Nelsinho Filho, uma espécie de irmandade rodriguiana. Tanto ele quanto a dona Elza (viúva de Nelson) foram permanentemente estimuladores da pesquisa. Depois, me tornei o editor nacional da obra, junto à Companhia das Letras. Fui o coordenador editorial de sete livros, mais um que cedemos ao Ruy Castro para ele fazer a despedida de coordenador da coleção. Mesmo eu não tendo nenhuma religiosidade espírita, me parece que o Nelson sempre me guiou por estes caminhos. Há algo de verdadeiramente incansável nos seus escritos. Me vi enredado pelo Nelson como uma serpente (referência à peça A Serpente).
Entre os principais documentos sobre a obra rodriguiana estão a biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, e o longo ensaio de Sábato Magaldi no Teatro Completo. Quais são as principais novidades que seu livro traz em relação ao conhecimento que já estava estabelecido sobre Nelson?
Estamos falando de um gigante que se tornou um clássico. As leituras precisam, necessariamente, ser diversas. Não se pode esquecer na fortuna crítica a introdução de Pompeo de Sousa, bem como os textos de referência de Hélio Pellegrino, Junito Brandão e tantos outros. A diferença fundamental está no foco que cada um estabelece. O foco do professor Sábato Magaldi é a obra teatral, constituída por 17 peças. A pedido do Nelson, Sábato formulou uma separação dos conjuntos estéticos. Mas em nenhum momento traça um paralelo com o restante da obra que, em volume, supera em muito o teatro.
O Ruy Castro diz, na sua introdução, que não está em foco a obra, e sim a vida do biografado. Faz um caminho que pode até ser considerado rodriguiano, na qualidade da escrita, mas foge ao cotidiano concreto da trajetória do Nelson. Ele faz uma leitura rodriguiana da trajetória. Acho que foi mais exato quando escreveu um romance sobre Olavo Bilac.
No meu caso, busco compreender o que o mexicano Octavio Paz diz sobre Fernando Pessoa: "Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia ". Poderia ser tomada como uma "biografia da obra" rodriguiana. Portanto, são caminhos muito distintos os percorridos. Eu vou atrás das nascentes, da poeira da verdade que os formou.
A realidade está como um alimento para eles (os Rodrigues), mas não é o que importa. O que eles querem é transformar esta realidade.
CACO COELHO
O livro enfoca a genealogia da família Rodrigues até 1934, que é apenas o início da trajetória de Nelson. Como foi escolhido esse recorte?
Não é um recorte, é o princípio do percurso. Por isso mesmo o título. Não é sobre o Nelson e, ao mesmo tempo, é. É sobre a origem daquilo que chega até nós por meio do Nelson, o que batizamos como "rodriguiano". Por trás dessa expressão, há uma imensa constituição. Não caiu do céu. O que buscamos trazer é a genealogia desta constituição. Tentamos oferecer aquilo que nos orienta o geógrafo Milton Santos ao dizer que o método correto de entender o passado é buscar rever o que foi o presente, isto é, buscar encontrar o contexto em que aquele passado se modificou. Tudo aquilo que foi tocado por eles e tudo aquilo que me parece que exerceu algum tipo de influência neste percurso é o que o Dossiê deseja mostrar.
Quais são os elementos que caracterizam a "estética rodriguiana"?
Sobretudo, a brasilidade. Estávamos emergindo da literatura regionalizada, em que os sons da terra foram ouvidos pela primeira vez. É neste universo que os Rodrigues vão se movimentar, em especial, no terreno da super-realidade. A realidade está como um alimento para eles, mas não é o que importa. O que eles querem é transformar esta realidade. O mecanismo é a arte, que na dimensão deles não fere. É como agem diante de uma liberdade até certo ponto irresponsável. É o que leva Mario Rodrigues (pai de Nelson) a ser processado e preso várias vezes. É o que mina financeiramente o caminho deles. São libertários em um país que emerge e, de determinada maneira, ainda segue sendo colonial. Esta é a meta permanente: mostrar um país que está em desconformidade com o tamanho que eles pensam. Mario reflete sobre diversos caminhos para a autonomia do país. Assim como eles viram o futebol, o samba, o jornal e o teatro antes dos demais, também apontavam para as potencialidades infinitas do país continental.
De que forma os diferentes membros da família Rodrigues contribuíram para a criação de uma linguagem genuinamente brasileira?
Eles estão no âmago deste sentimento, não apenas como proclamadores da boa nova, mas como partícipes. O segundo jornal de Mario Rodrigues, Critica, mudou a forma como as notícias eram lidas. Grandes manchetes, desenhos enormes, uma diagramação que jamais havia sido empregada. O Mario Filho (irmão de Nelson) é quem percebe as condições para que o Brasil passasse a ser considerado o país do futebol. Roberto Rodrigues (também irmão) era considerado o mais destacado desenhista das Américas nesta época. Para se ter ideia da dimensão, Portinari foi apresentado à Escola de Belas Artes pelo Roberto. Joffre Rodrigues (outro irmão) foi o primeiro repórter a se interessar de modo sistemático pelo que acontecia nas favelas e acaba criando os desfiles de escolas de samba, completamente ausentes da programação oficial até então. Nelson vai conhecer o teatro de revista, a dança, arte pela qual tem fascínio, começando a criar a sua própria percepção diante desse quadro a sua volta. Acaba por ser o divulgador dos cantores e cantoras de rádio. Foi nesse momento e através deles que este Brasil ganhou voz, porque dotado de uma linguagem própria. O tipo do brasileiro começava a ganhar oralidade. Somente a partir daí é que o teatro poderá dispor dele.
O tipo do brasileiro começava a ganhar oralidade. Somente a partir daí é que o teatro poderá dispor dele.
CACO COELHO
Como começa a genealogia da família Rodrigues?
A raiz está no Recife, como o Zé (Celso Martinez Corrêa, diretor e ator morto neste ano) me falou um dia: "Vai ver o que tem no Recife. Está tudo lá". Parto de duas provocações iniciais. Uma do Paulo Francis, quando Nelson morreu, em 1980. Francis falava de um "nada inocente" desconhecimento das razões por que o Nelson morreu deixando praticamente nada. Somo a isto o que o Nelson dizia sobre a influência do seu pai na sua obra. Ele diz que não teria escrito uma frase, uma única peça de teatro, se não fosse filho de Mario Rodrigues, o maior jornalista brasileiro de todos os tempos. Nelson comenta que nas histórias literárias não existe uma linha sequer sobre seu pai. E repete: existe "um vil silêncio". Eu junto o "nada inocente" do Paulo Francis ao "vil silêncio" de que o Nelson fala e vou atrás das razões do porquê deste "vil silêncio, nada inocente" que existe em relação às raízes profundas do nascimento daquilo que vai chegar até nós com o teatro, as crônicas, os romances do Nelson, que foi o que restou.
Com o intuito de acabar de vez com este silêncio, percorremos este caminho desde a primeira aparição de Mario Rodrigues, no veículo que seria o definitivo para eles, o jornal. Falo das sociedades literárias, que eram a sensação do momento. Agarramos a mão do Mario e viemos vindo, em um levantamento diário do caminho percorrido pelos Rodrigues.
Em fevereiro de 1934, Nelson vai cair doente, vítima da "peste branca". Vai se configurar na primeira parada dele, após sete anos de trajetória. Uma primeira crítica sobre ele, que o chamava de "domador das letras", configura um terreno de conhecimento da sua participação na imprensa e nas letras, já que promovia uma elevação da matéria jornalística à literatura.
Sobretudo o aspecto de já estar constituída a genealogia me fez colocar o ponto final. A esta altura já existem subsídios suficiente, é o que me parece, para que possamos encontrar no Dossiê Rodrigues as razões profundas daquele "vil silêncio, nada inocente".
Em entrevista a ZH em 2012, você criticou a forma como Sábato Magaldi categorizou as peças de Nelson (peças psicológicas, tragédias cariocas etc.). Você chega a propor uma nova categorização?
Não é exatamente uma crítica. É um modo diverso de encarar a obra. O professor Sábato olha exclusivamente para o teatro. Não está em consideração o conjunto da obra. Tem lá os seus critérios literários, certamente muito bem embasados. Eu olho para o conjunto da obra. Olhando por este aspecto, vence, sem sombra de dúvidas, o critério cronológico. A cada mudança de trabalho, mudavam os estilos dos seus escritos policromáticos, que lhe saltavam da pena iluminada.
A escritura da alma (de Nelson) está, a meu ver, nos romances. Quase a totalidade deles está correlacionada a alguma das peças de teatro.
CACO COELHO
A escritura da alma está, a meu ver, nos romances. Quase a totalidade deles está correlacionada a alguma das peças de teatro. É como se gastasse a linguagem ali para alcançar o preciosismo no teatro. O tanto que lhe custa lapidar para que sejam "diálogos pobres". Este som foi ouvido, primeiramente, diretamente nas redações, enquanto repórter policial, e no futebol. Este som está cravado na sua obra. Portanto, entendo que é inseparável o conjunto da obra do seu teatro. No romance O Homem Proibido, está a família de que a personagem Mocinha fala na Valsa nº6. Se quiser encontrar o que aconteceu com Sônia, sem as narrativas da Mocinha, é só ir no Homem Proibido, que está tudo o que aconteceu ali. Da mesma forma em A Mentira em relação a Viúva, Porém Honesta: as personagens são esculpidas ali para estarem cheias de vida aqui. E assim por diante.
Entendo que o Nelson cria por trilogias. Acho que existem três trilogia teatrais no conjunto das 17 peças. A primeira é a Trilogia Brasileira, que envolve Álbum de Família, Anjo Negro e Senhora dos Afogados, com direito a um drama satírico, no caso, uma farsa irresponsável, Doroteia. Depois, mais tarde, já diante das Tragédias Cariocas, vai haver duas trilogias. Uma, a Trilogia Mundana, composta pelos textos Perdoa-me por me Traíres, Viúva, Porém Honesta e Os Sete Gatinhos. A terceira é a Trilogia do Jornal, que conta com Boca de Ouro, O Beijo no Asfalto e Otto Lara Resende ou Bonitinha mas Ordinária. Entendo, também, que a sua jornada — já que o fator cronológico é que rege — está dividida em cinco fases: 1) os anos de formação (1926-1934), que são o foco do Dossiê; 2) a antecâmara e o surgimento do dramaturgo (1935-1943); 3) tragédia brasileira (1944-1950); 4) tragédia carioca (1951-1966); e 5) memorialista (1967-1980).
Como você buscou separar Nelson da persona criada em torno dele?
Nós conhecemos a obra ao contrário. Pelo que está posto, parece que quem construiu a obra foi aquela persona criada por ele, já pra lá da metade da carreira. Há muito de dialético nesta persona. Ela surge diante da ditadura militar. Ele vai criar um tipo, o "reacionário", para continuar se expressando. No caso do romance-revolução O Casamento, com mais virulência ainda. Neste período para o qual olha o Dossiê, existe sim o prenúncio desta figura, mas não é o seu porta-voz ainda. Não é necessária a separação. Na realidade, não existe uma razão para que se separe os escritos dos Rodrigues. Eles fazem parte de uma conspiração para a fixação do estilo, da sensibilização sobre a brasilidade.
Lançamento de "Dossiê Rodrigues", de Caco Coelho
- Nesta segunda-feira (18), das 17h30min às 20h30min, no Centro Cultural da UFRGS (Rua Eng. Luiz Englert, 333), em Porto Alegre. Entrada gratuita.
- A partir das 18h30min, haverá participações de Cisco Vasques, Gabriel Testa Coelho, Luiz Carlos Bombassaro, João Petrillo, Luiz Coronel, Nando Gross, Paulo Flores, Roger Lerina, Tânia Faria e Vieira da Cunha em uma leitura dramática de poemas e textos de Nelson Rodrigues; do pianista João Maldonado interpretando músicas comentadas no livro; e dos bailarinos Eduardo Severino e Maria Albers.
- O livro tem primeira edição pela Mecenas, com distribuição gratuita neta segunda aos 150 primeiros alunos, professores, jornalistas e artistas. Uma segunda edição, pelo selo Ói Nóis na Memória, está à venda por R$ 99 no site estantevirtual.com.br e nas lojas físicas do Beco dos Livros.