Por Lucio Carvalho
Escritor, autor de “Fica na Tua” (Saraquá, 2021) e “Inventário” (TAN, 2022). Editor da revista literária Sepé
Junto aos demais nas prateleiras de uma livraria, numa tela da internet ou na coleção particular de alguém, um livro é sempre muito semelhante aos outros livros. Como se pode distinguir um de outro? Não é pela gramatura ou qualidade da celulose, certamente não, mas logo se intui que o peso de um livro reside mais na obra e no que dela é inerente do que no objeto e sua exterioridade. É por isso que todos conseguem atestar uma descompensação tanto no valor de venda quanto no valor intrínseco de objetos de aspecto tão semelhante. Semelhança apenas aparente, diga-se de passagem. Nem todo o livro é obra e quem o disse não fui eu, mas Jacques Derrida na sua Gramatologia. De fato, a diferença se dá à leitura e logo que se a inicie desencadeia-se um complexo processo analítico-comparativo.
É essa a balança que cada qual regula com sua experiência, preferências e disposição para a surpresa. Quando acontece, é como o tilintar das moedas de uma slot machine: já não se pode mais largar aquele livro único e inimitável.
Não foi por sorte que caiu em minhas mãos o novo livro da poeta gaúcha Mariana Machado. Eu a leio desde as suas primeiras publicações e sei que, portanto, este é um livro de uma carreira que em 2022 obteve com Cães e Astromélias (Mondrongo, 2021) o terceiro lugar no Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. Agora, Mariana traz pela mesma editora um volume generoso de 250 páginas de sua poesia, com a publicação de Entre Mandalas, Espadas e uma Escada Caracol. Com o livro, o universo poético de Mariana ao mesmo tempo se arroja e densifica. Certamente, não pesaria mal em nenhuma boa livraria ou na prateleira de boa poesia de uma biblioteca.
Abertas as portas do universo expandindo do livro de Mariana, logo se parte ao encontro de uma recriação em versos do épico Sidarta, de Herman Hesse. Os 47 cantos do poema dão conta da busca por esclarecimento que o buda empreendeu a sós em sua bem conhecida jornada. Aqui, logo se pode ver que também Mariana empreende uma jornada em que se confronta consigo mesma e com o mundo numa tensão poética rara de se ver. E o esclarecimento de Sidarta, o que “quisera dar-se apaixonadamente a tudo”, e que cumpriu o destino por ele mesmo forjado e “deixou tudo para trás e foi-se embora”, não é senão a aprendizagem dos que se desapegam, nesse processo de decantação pelo qual também se transformam os poetas em poetas.
Ao recuperar os ecos antepassados das mulheres do Rio Grande do Sul ou ao combater e desvendar a densidade do mundo presente, Marina combina sua voz mais coloquial com os recursos de uma excelente leitora de poesia. Isso se confirma ao conhecerem-se as traduções que ela também registra no livro e vão de Goethe a Jacques Prévert, alargando as margens do seu próprio universo ao universo de outros tantos poetas.
No poema A Lavadeira, a poeta rende a sua escuta poética às mulheres:
Quebrando a geada, pé por pé, no mato,
alta a trouxa de roupas – feito Atlas –,
pulando arames, chega à beira d’água
pra mergulhar os dedos, vê-los mortos
e desfazer na fibra seus caroços.
Sim, há mais escuta e um olhar acurado para a vida que um discurso em seus poemas. É uma escuta de memória e da trama dos motivos sutis da vida feminina, suas restrições históricas, desejos e ambições. Mas a poesia se dá apesar disso e quando se encontra com o que há de sublime no mínimo, vê-se também que a poeta nunca prescinde de sua integridade dedica aos versos, além de técnica vigorosa e têmpera mental, a amorosidade áspera e táctil como é própria da dicção do sul. Livre do embaraço dialetal, a poesia de Mariana rebrilha de sua própria luz.
Mas é poesia que também se deixa notar no mais íntimo processo de maternidade e no encontro de uma plenitude inesperada entre o trivial e o religioso. Com um senso crítico por vezes cáustico, encara a própria rotina e a literatura desse tempo com o mesmo desembaraço com que se depara com as questões metafísicas da fé e de Deus. Seja com a leveza sintética do hai kai ou valendo-se da tradição das formas fixas, ela expande seu domínio do ofício sem que se encontre sequer uma repetição de motivos. Além de uma raridade, uma amostra de que este é um universo irrefreável. Vivendo em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, para nossa sorte o seu universo agora se torna acessível na forma de um livro que também é obra. Talvez por essa combinação pese bastante também na sua estante de livros.