Por Lilian Rocha
Analista clínica, musicista, autora de “Menina de Tranças” (Ed. Taverna), entre outros
Quem são as Mulheres Esquecidas? Queremos conhecer seus nomes, histórias, tragédias, afetos e abusos sofridos? Nesse livro da psicanalista e escritora porto-alegrense Rosane Pereira, encontramo-nos diante de quatro personagens principais com seus dramas, suas experiências e vivências. São quatro mulheres sobre as quais a autora deseja trazer à tona em sua possibilidade de serem vistas, lidas e lembradas, porque já sofreram todo tipo de violência, de invisibilidade e de desumanização. São trajetórias duras, mas, a despeito disso, Melina, Teresa, Júlia e Luana conseguem se reconhecer em um espaço afetivo e acolhedor, um velho casarão abandonado, em plena São Paulo do século 21, depois de muito deambularem pelas ruas e vielas da cidade. Nesse casarão, elas conseguem sobreviver ao olhar crítico, desdenhoso e brutal da nossa sociedade e se percebem como mulheres que podem se acolher, cuidar-se umas das outras, vivenciar um outro tipo de família, não a que tiveram, onde conheceram o medo, a crueldade, a morte e o desamor. É uma história que perpassa a marginalização de mulheres moradoras de rua, em situação de violência e que, em um certo momento de suas vidas, se encontram, percebem-se como espelho umas das outras e se ajudam na árdua travessia, criando entre elas a sororidade e dororidade necessárias para seguirem em frente.
Trata-se de uma narrativa ficcional, mas sabemos que nos fala daquilo que, a todo instante, sem que nossos olhos e ouvidos pareçam ter ciência, acontece nas ruas, vielas, praças, abrigos e marquises de todas as cidades do nosso país. Sabemos também o quanto essas mulheres, em suas trajetórias, são atravessadas pelo machismo, pelo racismo e pelo classismo. São essas mulheres pelas quais passamos todos os dias e não as vemos porque não fazem parte do nosso mundo, da nossa realidade supostamente ordenada e sólida. E, apesar da indiferença daqueles que passam por elas, apesar do não lugar que essa indiferença lhes confere, elas estão ali, sobrevivendo, com resistência e com resiliência. Mesmo com a dor da perda de suas companheiras, por feminicídio ou outra fatalidade, há uma ressignificação da vida para aquelas que permanecem vivas. As quatro protagonistas narram vivências de situações duras, dolorosas e profundamente violentas. Ao mesmo tempo, são capazes de acolher, dar afeto, proteção e auxílio em um espaço não seu, onde, no entanto, fundaram um território todo delas, no qual encontraram o aconchego necessário para resgatarem a sua humanidade.
Não são heroínas, são mulheres frágeis e muito corajosas, que sobrevivem a cada dia ao custo de muita luta e sofrimento. Todas as outras mulheres que passaram pelo casarão, como Ângela, Alice, Maria Clara, Lilian, Mariana e Margarida contribuíram, cada uma a seu modo, para a tessitura da rede de apoio e o compromisso com a vida que criaram juntas naquele espaço.
No casarão, elas também viveram a pandemia de covid-19. O medo novamente bateu às suas portas: o medo da fome, o medo da morte, o medo do distanciamento. Tiveram que se reinventar, sobreviver à angústia, renascer das cinzas e transcender as separações.
É um livro que nos faz pensar no quanto as mulheres brasileiras, principalmente as que vivem nas ruas e que passam por várias penúrias, sofrem em nosso país. Na origem desse sofrimento, é importante que lembremos, está a perpetuação histórica de dor que as marca em gênero, raça e classe social. Essas mulheres esquecidas carregam consigo o potencial feminino que faz com que, por mais que sejam maltratadas pela estrutura do Estado e da sociedade, não desistam de buscar o que é imprescindível para elas: um lugar no qual possam cultivar a delicadeza do viver. Também por isso elas perseguem a leveza e o perfume das melissas e margaridas, perfume este que tem o poder de aliviar sua dor. Com sua escrita e olhar diferenciados, a autora nos coloca em intimidade com essas mulheres que lutam por sua humanidade e cuja história não termina com o último ponto da narrativa. Ao contrário, esse ponto acende uma luz para que, da próxima vez que as encontremos pelas ruas, não viremos o rosto com medo de enxergar nelas a precariedade humana da qual todos vivemos em nossos dias, tendo perdido a bússola do cuidado.