Por Altair Martins
Escritor e professor
Um tema se faz necessário justamente quando não o vemos. E se a poesia dá fala a quem não a tem, também os que leem parecem sentir a própria voz alterada. Esse é o mérito geral de Entregador de Pressa, novo livro de Marlon de Almeida.
Por exemplo: qual a voz do motoqueiro ou ciclista que nos entrega a pizza, a esfirra, o xis? E que voz temos antes e depois da entrega? Daí parte o primeiro aplauso ao livro: a capacidade de investigar as sensações humanas desses personagens que constroem, na franja do tempo, nossos cotidianos essenciais mas invisíveis:
Saio cedo,
volto tarde,
morro em breve.
Pelo viés dos entregadores (mas não só) que trabalham ocultos pelo capacete e pelos uniformes, invariavelmente anônimos, os poemas não mostram título e rimam vogais sutis (à João Cabral), com verbos quase sempre no presente. O uso constante de dêiticos de lugar (que na minha leitura instauram uma sensação de falsa onipresença com a qual os motoboys são obrigados a cumprir) marca instâncias, espaços “entre”, os únicos lugares onde nos encontramos com os que não param. Quanta beleza há neste curto poema feito de um flagrante delicado entre vida e morte, passo e sorte:
Sob o capacete há bem menos ruídos.
Escuto o que me digo,
mas eu não me compreendo.
Nas calçadas as pessoas passam
como se levadas por algum vaqueiro
como se manipuladas por uma criança
com suas figurinhas.
Ninguém fala ninguém olha pra nada.
Pelas ruas não há carros,
há pequenos mundos em si mesmos.
No meio disso tudo,
vão-se os motoqueiros.
Mas, claro, este é um livro proletário. E embora possamos entrever o mundo pandêmico, o conjunto de poemas diagnostica um isolamento muito anterior a 2020. Vemos o país que usa as pessoas sob o pretexto de que não “progredimos” o suficiente porque, à exceção dos donos da Firma e da Fazenda, ainda não entregamos à Pátria o nosso máximo (uma pátria que cresceu sugando gente escravizada). Daí os poemas sugerem que, se a massa humana que se entrega resolve parar, a Firma e a Fazenda quebram. “Eu me (tele)entrego”, diz alguém com nossa voz e nosso rosto. Incrível: comemos telentrega, exigimos dos entregadores a mesma velocidade exigida de nós e ainda votamos nos patrões:
Partir com a moto em velocidade,
a fumaça da fúria tecendo o disfarce
das palavras mais duras.
Fugir até o deserto da vaidade
e como a ave de rapina
alimentar-se da carcaça das ideias,
como se de fato interessasse o argumento e a
rima rica.
Voltar como o cachorro voltaria
ao comando de seu dono,
o hábito de estar preso à mesma guia,
aos mesmos restos de alimento,
dia após dia, até o osso.

E aqui e ali lemos a cidade com os punhos cerrados, com cercas de ouriço e fios elétricos, a cidade que teme e mata. Então a atmosfera de urgência sufoca os dias, de tal modo que alguns poemas que (só parecem) não ter ligação com o tema são perpassados pela violência velada do nosso esquema de vida. Por isso outro aspecto do livro, pra mim mais obviamente tocante, é o de sentirmos de repente que, além das paredes, há alguém que morre com as mesmas necessidades: alguém enfim a que estamos alheios, porque na maior parte das vezes vivemos de modo doente, solitário ou apenas entre nossos pares:
Para Magali
Muito barulho na calada da noite,
alguém jogou uma pedra no telhado,
pisou nas flores do jardim.
Amanheceu escuro,
elegemos brontossauros como heróis
e o fogo arde nesta floresta de horrores.
Mas temos um ao outro, amada,
ainda há flores e árvores intactas.
Sentemos, pois, de mãos dadas,
hoje o pôr do sol é raro
e há alguma campina pro nosso filho correr
até o fim.
Assim que o livro, posto que trate de entregas, acidentes e sequelas, é feito todo ele de solidão – inclusive a nossa, dos que entregamos ou exigimos pressa. Não bastasse isso, os textos contemplam os seres mais invisíveis, como os animais da pista. Falo dos belíssimos poemas sobre gatos e cães, como este, que é simplesmente uma pequena obra-prima, o meu preferido, tão antológico que o reproduzo e me (tele)entrego:
Na autopista
a cauda ainda abana
o último frêmito de vida.
A gata ainda respira
mas apenas anda os olhos
onde a paisagem do dia
aos poucos encerra a sua cortina,
enquanto no entorno
o mundo mantém a mesma e indiferente
pisada
para a qual a felina é um novelo de pelos,
mais nada.