Quando Annelies Marie Frank, 13 anos, escreveu em seu diário, em julho de 1942, que era o tipo de menina que se importa mais com lembranças do que com vestidos, não poderia prever que as memórias de sua adolescência se transformariam em um dos mais importantes registros dos horrores do Holocausto. Escondida da perseguição nazista, Anne usou o caderno de capa quadriculada que ganhara de aniversário para reportar o cotidiano de sua família e outros amigos judeus no esconderijo no qual esteve por dois anos. Os escritos originaram a obra que rodou o mundo como O Diário de Anne Frank, editada por seu pai, que ganha agora uma nova versão: Querida Kitty (320 páginas, R$ 39,90), lançada nesta quinta-feira (29) pela editora Zahar.
Publicado pela primeira vez em português como um título independente, o livro é a concretização de um sonho de Anne Frank: transformar as cartas à amiga imaginária Kitty, as mesmas que compõem a versão original de seu diário, em um romance epistolar. Sonhando com a publicação tão logo a guerra chegasse ao fim, em maio de 1944 ela começou a se dedicar à revisão de todas as suas confissões, a fim de adaptá-las a uma obra que entendia poder se tornar pública.
"Ela excluiu vários registros, reescreveu outros, adicionou novas descrições, constatações e reflexões, criando um texto interessante e de leitura muito prazerosa. Além do seu considerável talento literário, é evidente também o conhecimento adquirido em sua leitura assídua e praticada com muita seriedade, principalmente de romances históricos e de biografias de personalidades importantes", avalia a escritora e pesquisadora Laureen Nussbaum, sobrevivente do Holocausto e amiga de infância de Anne Frank, em texto que consta no posfácio da obra.
Para o romance, Anne preocupou-se em incrementar a descrição dos momentos históricos que acompanhou de dentro do esconderijo, reforçar a expressão de seus sentimentos diante da perseguição nazista, detalhar ainda mais o perfil dos personagens de seu diário e excluir trechos que considerou não serem interessantes ao leitor. Na nova versão, eventos como as descobertas que acompanharam suas primeiras menstruações e os registros de sua relação conflituosa com a mãe acabaram descartados.
"Sinto a necessidade de ver minha mãe como exemplo e de respeitá-la e, na maioria das coisas, minha mãe é mesmo um exemplo para mim. Mas um exemplo daquilo que eu justamente não devo fazer", escreveu ela em 6 de janeiro de 1944. Esse é um dos comentários que foi retirado por Anne na revisão do romance — e que integra justamente o hall de suas declarações mais polêmicas à amiga imaginária Kitty.
Evolução
"Aqui, eu mesma sou minha mais impiedosa e melhor crítica, eu própria sei o que está bem escrito ou não", escreve ela sobre o processo de editar seus escritos originais. Compará-los ao crivo desta nova edição, feita por uma Anne mais madura do que aquela que começou a escrever sem grandes pretensões, revela a própria tomada de consciência da menina judia sobre a importância de suas memórias.
"Quem mais além de mim vai ler estas cartas no futuro?", questionou ela em 7 de novembro de 1942, afirmando que preencher as linhas de seu caderno era como prestar confissões secretas a uma amiga querida. "Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre a Casa dos Fundos (traduzido do holandês Het Achterhuis por Karolien van Eck e Ana Iaria). Com esse título, as pessoas acreditariam que se trata de um romance policial. Agora, falando sério, 10 anos depois da guerra deve ser engraçado ler sobre como nós, judeus, vivemos, comemos e conversamos aqui", escreveu em março de 1944, já planejando converter seu diário secreto em romance epistolar.
Apesar de a versão romanceada deixar ainda mais evidente o talento de Anne Frank como escritora — "um assombro para uma menina de 13 anos", como definiu Philip Roth —, ela nunca conseguiu terminá-la. Enquanto seus escritos originais vão até 1º de agosto de 1944, Querida Kitty encerra com a carta escrita por ela em 29 de março daquele ano, pois Anne não pôde continuar sua revisão. A última carta da versão reeditada por ela é, justamente, aquela em que fala sobre o sonho de publicar seu romance, ora interrompido. Com o esconderijo da família Frank descoberto pelo exército nazista, Anne foi enviada a um campo de concentração, onde morreu meses depois, obrigada a parar de sonhar.
Cronologia dos diários de Anne Frank
- Anne Frank ganhou o caderno que lhe serviria de diário em junho de 1942, em seu aniversário de 13 anos. Ela escreveu nele, em sua maior parte, enquanto esteve no esconderijo, até agosto de 1944.
- Seus relatos foram publicados pela primeira vez em 1947. Esta primeira publicação é a versão mais conhecida do Diário de Anne Frank, batizada de versão C. Ela foi editada pelo pai de Anne, Otto Frank, único sobrevivente do Holocausto em sua família. Nela, Otto mistura trechos dos escritos crus da filha, a chamada versão A, com trechos da reedição que Anne fez ao planejar seu romance epistolar, a versão B. Otto também suprimiu alguns trechos.
- Os relatos de 6 de dezembro de 1942 a 21 de dezembro de 1943 do diário original de Anne (versão A) nunca foram encontrados. Em relação a este período, só ao que se tem acesso é a versão B, editada por ela pensando no romance.
- Seu romance epistolar foi publicado pela primeira vez como uma edição solo, independente das versões A e C, em 2019. Agora, o sonho de Anne ganha sua primeira versão em português.
- Desde a primeira publicação, em 1947, O Diário de Anne Frank foi traduzido para mais de 70 idiomas e vendeu mais de 35 milhões de exemplares, em suas diferentes versões.
- Além do diário, Anne também se dedicou a escrever contos e chegou a iniciar um outro romance, baseado na história de seu pai, mas não conseguiu concluí-lo.