Uma tragédia que tirou a vida de 228 pessoas tomou conta dos noticiários em 2009. Com a queda do Airbus da Air France, famílias sofreram a experiência de um luto súbito, muitas delas privadas dos corpos de seus familiares – 73 vítimas foram sepultadas pelo oceano. Por alguns anos, esse episódio se tornou uma obsessão para Marcos Mantovani, escritor de Caxias do Sul, uma das vozes promissoras da literatura do Rio Grande do Sul.
No recém-lançado romance Clandestinidades, Mantovani vai além dos números. O autor usa a ficção para demonstrar como um drama de grande repercussão altera a vida cotidiana das pessoas próximas das vítimas.
O livro acompanha os passos de Rui, enfermeiro que perdeu o irmão no voo 447. Sete anos após, recebe um telefonema da já distante ex-cunhada. A ligação repentina desperta memórias conflituosas. Rui, no entanto, não reencontra apenas o passado, como também passa a rever relações e afetos.
– O livro conta com dois planos narrativos. No primeiro, está a grande tragédia. Mas, a partir de certo momento, o que ganha espaço são as tragédias silenciosas, ocultas no nosso cotidiano – afirma Mantovani.
Em certo ponto da narrativa, um episódio envolvendo o pai de Rui faz com que o genitor vá parar no hospital, com um pequeno corte no supercíllio. Apesar do corte ser discreto, a imagem que Rui tem do pai terá que passar por uma revisão, devido às circunstâncias do estranho incidente.
Terceiro livro do escritor, Clandestinidades é um trabalho realizado a partir de seis anos de pesquisa, mas também de trabalho com a linguagem. O resultado é um texto envolvente, com ritmo forte e personagens bem construídos.
Porto Alegre é um cenário constante da narrativa, descrita de modo sóbrio, porém afetuoso. Referências conhecidas ambientam o leitor em diferentes bairros, como o Centro, com a Casa de Cultura Mario Quintana; o Bom Fim, com o Hospital de Pronto Socorro; ou a Cidade Baixa, com o cinema Guion.
Em alguns capítulos, notícias de jornais e sites são citadas diretamente, para indicar alguma lembrança de Rui – inclusive com data de publicação e endereço na internet. O recurso não atrapalha a leitura. Ao contrário, demonstra o domínio do narrador sobre o assunto, como um cicerone que leva o convidado pela mão para conhecer a paisagem.
– A tragédia, com seus 73 corpos não encontrados, sempre me intrigou. Fiz uma varredura completa sobre o episódio. Consultei as caixas-pretas. Mas era preciso contar tudo isso de maneira literária, de um modo interessante. A grande batalha foi com a linguagem – conta Mantovani
Clandestinidades
De Marcos Mantovani
Vírtua, 160 páginas, R$ 35, à venda on-line em doarcodavelha.com.br