Uma sombra paira sobre o Mundo Mágico, mas dessa vez não são dementadores ou seguidores de Lord Voldemort. É a sombra da própria criadora de Harry Potter, J.K. Rowling, que passa a ser rechaçada por parte dos fãs do menino bruxo sob acusações de transfobia. Outros escritores não querem ter seu nome associado a ela e até os atores que ganharam fama graças à saga se voltam contra a autora. Mas como chegamos até aqui?
A última onda de críticas a Rowling teve início após um comentário no Twitter em 6 de junho. Ela compartilhou o artigo opinativo Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate ("Criando um mundo pós-COVID-19 mais igual para as pessoas que menstruam") com a irônica nota: "‘Pessoas que menstruam.’ Eu tenho certeza que costumava existir uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Wumben? Wimpund? Woomud?" (em referência à palavra "women", mulheres, em inglês).
A ironia não foi gratuita, uma vez que, em seguida, a escritora fez questão de destacar sua visão sobre gênero, que não aceita mulheres trans como "verdadeiras mulheres". De acordo com Rowling: "Se o sexo não é real, a realidade vivida das mulheres em todo o mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a capacidade de muitos discutirem significativamente suas vidas".
A autora de Harry Potter ainda complementou seu raciocínio afirmando ser "empática" a pessoas transsexuais, e que até marcharia com elas se fossem discriminadas por serem trans, mas que nenhuma delas poderia compreender o que é "ser mulher".
Desde junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de doenças mentais, afirmando que a situação é resultado apenas de um desacordo entre o gênero de nascimento e aquele com o qual a pessoa se identifica. Ou seja, alguém cresce sabendo que é de outro gênero, mas preso ao corpo errado. Estas pessoas têm o direito de mudar de sexo e obter uma nova identidade, de acordo com sua realidade.
Assim, teve início uma campanha em favor dos direitos de pessoas transsexuais — "trans rights are human rights" (os direitos dos transsexuais são direitos humanos), na manifestação em inglês —, que envolveu celebridades, editoras, outros escritores e uma parte dos fãs da saga de fantasia infanto-juvenil que deu fama e fortuna a Rowling.
Reincidente
Com 14,5 milhões de seguidores no Twitter, nenhuma afirmação da escritora britânica passa despercebido. Também é por isso que fãs mais atentos já tinham um vislumbre das ideias de Rowling sobre gênero.
Em dezembro de 2019, no mesmo perfil, ela expressou apoio à pesquisadora Maya Forstater, que foi demitida de seu emprego no Centro de Desenvolvimento Global pelo que ela afirmou serem"ideias críticas sobre gênero". Na verdade, Forstater criticou abertamente um projeto do governo britânico que facilitaria a pessoas transgênero mudar seu sexo legalmente.
"Vista-se como quiser. Chame a si mesmo do que quiser. Durma com qualquer adulto que consinta você. Viva sua melhor vida em paz e segurança", publicou Rowling sobre o caso. "Mas forçar as mulheres a deixarem seus empregos por afirmarem que sexo é real? Eu apoio Maya."
Já na época não caiu bem, mas fora algumas reações de fãs, o assunto caiu em esquecimento. Até o tema retornar neste junho.
Repercussão
Nos comentários das publicações polêmicas de Rowling, fãs se digladiam entre aqueles que apoiam a "coragem" da escritora de revelar suas opiniões controversas sobre gênero e os que parecem horrorizados ao descobrir que um ídolo de infância não compactua com seus ideais sobre diversidade.
"Você é uma parte querida da vida dos meus filhos. Dito isto, esta discussão me confunde. 'Minha vida foi moldada por ser mulher.' Isso é 100% verdadeiro para mulheres trans também. E o que é 'sexo'? Uma mulher que não pode ter filhos é menos mulher? Ou uma mulher com um cromossomo xxy?", questionou a escritora Naomi Wolf, de O Mito da Beleza. Já a cantora King Princess declarou: "Por favor, atenha-se aos bruxos e tal. É realmente melhor para você".
O verdadeiro embate, no entanto, veio quando o ator Daniel Radcliffe, 30 anos, resolveu entrar na discussão. Responsável por interpretar Harry Potter nos cinemas, ele escreveu uma carta aberta aos fãs da franquia, publicada no site da associação LGTB The Trevor Project.
"Mulheres trans são mulheres", declarou, sem grandes rodeios. "Qualquer declaração contrária apaga a identidade e a dignidade das pessoas trans e vai contra todos os conselhos dados por associações profissionais de saúde que têm muito mais experiência nesse assunto do que Jo ou eu."
Em seguida, o artista — que reconheceu o impacto do trabalho de J.K. em sua vida e afirmou que não se tratava de um embate — compartilhou seu pesar com os fãs da saga que se sentiram feridos pelos comentários da escritora. "Eu realmente espero que você não perca totalmente o que era valioso nessas histórias para você", afirmou. "Se você encontrou alguma coisa nessas histórias que ressoou com você e o ajudou em qualquer momento da sua vida, isso existe entre você e o livro que leu, e é sagrado."
No dia seguinte, Emma Watson, que deu vida a Hermione Granger nos cinemas, ecoou a mensagem de Radcliffe, sem citar Rowling. "As pessoas trans são quem dizem ser e merecem viver suas vidas sem serem constantemente questionadas ou informadas de que não são quem dizem ser." E completou em um segundo tuíte: "Quero que meus seguidores trans saibam que eu e tantas outras pessoas ao redor do mundo estamos vendo vocês, respeitamos e os amamos por quem você são".
Eddie Redmayne, que interpreta o protagonista da nova saga do Mundo Mágico, Animais Fantásticos, também se posicionou.
— Como alguém que trabalhou com J.K. Rowling e membros da comunidade trans, eu queria deixar absolutamente claro com quem está meu apoio. Eu discordo dos comentários de Jo. Mulheres trans são mulheres, homens trans são homens e identidades não binárias são válidas — declarou em entrevista a Variety.
Em 2015, o ator estrelou o longa A Garota Dinamarquesa, uma cinebiografia de Lili Elbe, uma das primeiras mulheres a passar pela cirurgia de redesignação sexual.
A situação não ficou isolada nas notas de repúdio. Desde que a polêmica ganhou força, funcionários da editora Hachette, responsável por publicar o novo livro infantil de J.K. , The Ickabog, se recusaram a trabalhar com a obra. Já na última segunda-feira (22), quatro escritores que eram representados pela mesma agência literária que Rowling decidiram deixar a companhia, uma vez que a Blair Partnership não quis se posicionar sobre o caso.
Até o momento, a criadora de Harry Potter não se retratou pelo caso, mas publicou um artigo em seu site no dia 10 de junho em que busca explicar a origem de sua visão. Rowling revelou ter sido vítima de abuso doméstico e agressão sexual no texto. "Estou mencionando essas coisas agora, não em uma tentativa de obter simpatia, mas por solidariedade com o grande número de mulheres que têm histórias como a minha, que foram criticadas por serem fanáticas por se preocuparem com espaços de sexo único", declarou.
De outro lado, até mesmo a Warner Bros., responsável pela franquia Harry Potter e os derivados Animais Fantásticos no cinema, emitiu um comunicado sobre o assunto, destacando que sua posição em relação à inclusão "está bem estabelecida". "Valorizamos muito nossos contadores de histórias que dão tanto de si para dividir suas criações conosco. Reconhecemos nossa responsabilidade de mostrar empatia e defender a compreensão de todas as comunidades e pessoas, particularmente aquelas com quem trabalhamos e aqueles que alcançamos com nosso conteúdo", acrescenta a nota.