O Supremo Tribunal Federal derrubou neste domingo (8) a decisão que liberava apreensão de livros na Bienal do Rio de Janeiro. O evento, que chega ao fim neste final de semana, possui mesas redondas, painéis temáticos e comercialização de livros. A programação ocorre no Riocentro.
A polêmica envolvendo o evento começou na segunda-feira (2), pelas redes sociais, e tem como protagonista a HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças. Publicada originalmente em 2010, a obra é o 66º volume da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel, lançada em 2016 no Brasil pela Editora Salvat em parceria com a Panini Comics. A ideia é republicar gibis em formato de luxo, com capa dura.
Com nove edições, a saga mostra dezenas de super-heróis da Marvel, incluindo duas versões jovens dos Vingadores, Wiccano e Hulking, que são namorados. Em um dos trechos da obra, eles aparecem se beijando, em edição escrita pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.
A obra, no entanto, foi acusada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, de possuir "conteúdo impróprio para menores". Ele determinou o recolhimento de exemplares da HQ na Bienal do Livro, o que levou a uma fiscalização da prefeitura no evento. O fato também fez com que a organização da feira literária pedisse à Justiça um mandado de segurança preventiva para garantir o direito dos expositores de “comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas”.
Entenda o caso
Redes sociais
Na segunda-feira (2), usuários foram ao Twitter comentar a forma como a HQ estava sendo vendida na Bienal. "A nova lacração da Marvel: aí nossos filhos ou sobrinhos vão à Bienal do Livro, evento reconhecido da Educação e motivação a leitura. E quem não gosta dos Vingadores? Compra 'A Cruzada das Crianças' vem em embalagem lacrada e olha o que encontra dentro quando chegam em casa", escreveu um internauta, em postagem que foi republicada por diversos perfis. Muitas pessoas chegaram a enviar essa queixa para o presidente Jair Bolsonaro e jornalistas.
Imbróglio foi parar no Plenário na Câmara dos Vereadores
Na quarta-feira (4), no plenário da Câmara Municipal do Rio, o vereador Alexandre Isquierdo (DEM) também reclamou sobre a venda do livro na Bienal. Com a obra em mãos, ele disse que o ato não era homofóbico e que a comercialização era "coisa de bandido e covarde":
— O autor, que é assumidamente gay, coloca dois super-heróis se beijando e tendo relação homossexual. Não dá para admitir covardia contra as nossas crianças. Propagação e divulgação homossexual para as crianças. Os pais estão comprando achando que é um livro infantil. Cada um faz o que quiser da sua vida. Agora, descer goela abaixo das nossas crianças é coisa de bandido e covarde. Estou apresentando uma moção de repúdio — afirmou Isquierdo, que também replicou sua opinião em suas redes sociais.
Notificação e tentativa de recolhimento
Na tarde de quinta-feira (5), a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) expediu uma nota pedindo que a Bienal adequasse as obras expostas na feira conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em nota, a Secretaria afirmou que "notificou a organização da Bienal do Livro a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes. Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ainda ter a licença cassada."
Logo após a notificação, guardas municipais foram à Bienal com o objetivo de recolher os livros. Os agentes foram recebidos pela direção do evento e, após uma conversa fechada, saíram do Riocentro sem cumprir o objetivo.
O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente
O Artigo 78 afirma que revistas e publicações com material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes devem ser comercializados em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo. Além disso, as editoras devem cuidar com as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas e pede que elas sejam protegidas com embalagem opaca.
O segundo artigo citado pela Seop, o número 79, diz que "revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família".
Crivella se pronuncia e Bienal responde
Na noite dessa quinta-feira (5), o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), determinou que a obra fosse recolhida. O político classificou o livro como "conteúdo impróprio para menores".
— Livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo — declarou Crivella em vídeo divulgado em seu Twitter. — A prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade.
Logo em seguida, em nota oficial, a Bienal do Livro se recusou a acatar a medida proposta pelo prefeito. "Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor", diz o texto.
Sucesso de vendas
Na manhã desta sexta-feira (6), em menos de uma hora, todos os exemplares da HQ Vingadores — A Cruzada das Crianças disponíveis nos estandes da Bienal do Livro foram vendidos. A obra estava indisponível também no site da Salvat.
Embora essa seja a posição oficial, funcionários ouvidos pelo jornal Folha de S. Paulo disseram que foram orientados a recolher títulos com temática LGBT+ ou que pudessem gerar polêmicas por causa da fiscalização da prefeitura.
A organização da Bienal afirmou que não irá recolher nem embalar nenhum livro, pois o conteúdo não é impróprio nem pornográfico. Mas ressalta que qualquer pessoa que se sentir ofendida ou não gostar de algum título adquirido tem direito de trocá-lo.
Fiscalização
Acompanhados do subsecretário de operações da Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio de Janeiro – coronel Wolney Dias (ex-comandante da Polícia Militar) –, fiscais da prefeitura chegaram à Bienal do Livro por volta do meio-dia desta sexta (6). A equipe se dividiu pela feira para visitar os estandes.
Conforme o coronel Wolney Dias, o objetivo era verificar a denúncia de que livros impróprios para menores de idade estavam sendo vendidos na Bienal. Segundo ele, a ação não se tratava de censura e o grupo cumpria uma "recomendação da Procuradoria Geral do Município". No final da visita, ele foi questionado se havia encontrado algo na Bienal:
— Muitos livros — respondeu.
Segundo a prefeitura, não foi achado nenhum livro pornográfico indicado para menores de idade. Também não há nenhuma nova visita programada ao evento.
Bienal recorre à Justiça
No fim da tarde desta sexta-feira, a organização do evento entrou com um pedido na Justiça a fim de garantir o direito dos expositores de “comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas”. O mandado de segurança preventivo solicitado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) buscava garantir o pleno funcionamento do evento.
Em nota, a Bienal disse que irá manter a programação do fim de semana, que inclui debate sobre literatura trans. A proposta do evento é "dar voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser". A organização afirmou ainda é "um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados".
Crivella se pronuncia novamente
Por volta das 18h desta sexta-feira, Crivella fez uma nova publicação em suas redes sociais a respeito do recolhimento da obra. Em um vídeo de meio minuto de duração, ele diz:
— Há uma certa controvérsia na mídia pela decisão da prefeitura de mandar recolher os livros que tinham conteúdo de homossexualidade atingindo um público infantil, um público juvenil. O que nós fizemos é para defender a família. Esse assunto tem que ser tratado na família. Não pode ser induzido, seja na escola, seja em edição de livro, seja onde for. Nós vamos sempre continuar em defesa da família.
Liminar concedida
No final da tarde, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro publicou uma decisão liminar impedindo a prefeitura carioca de apreender livros na Bienal e cassar o alvará do evento. Na decisão do desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes, a Justiça afirma que não é competência do município fazer esse tipo de fiscalização. "Alguns livros da Bienal espelham os novos hábitos sociais, sendo certo que o atual conceito de família, na ótica do STF, contempla vária formas de convivência humana e formação de células sociais", continua a liminar. O documento afirma ainda que "tal postura reflete ofensa à liberdade de expressão constitucionalmente assegurada".
Ação de Felipe Neto
A tentativa de censura de Marcelo Crivella irritou o youtuber Felipe Neto, um dos mais populares do Brasil. Na sexta-feira, Neto anunciou que compraria milhares de exemplares com temática LBGT+ dispostas na Bienal do Livro e, depois, os doaria.
A distribuição ocorreu na tarde de sábado e durou duras horas. Quem queria participar da ação chegou a fazer fila para conseguir um dos 14 mil exemplares. Alguns seguravam bandeiras com as cores do arco-íris.
As obras vinham lacradas com uma embalagem com a seguinte mensagem: "Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas. Felipe Neto agradece a sua luta pelo amor, pela inclusão e pela diversidade".
Reviravolta
Assim que a doação de livros LGBT+ feita por Felipe Neto encerrou gerando manifestações na Bienal do Livro, o Tribunal de Justiça do Rio suspendeu a liminar que impedia o recolhimento de exemplares solicitado por Crivella. Assinada pelo desembargador Cláudio de Mello Tavares, a decisão mandou tirar as obras com temática LGBT+ que não estivessem lacradas e advertência para o conteúdo.
No texto, o desembargador diz que "não se tratar de ato de censura, mas reputa ser inadequado que uma obra de super-herói, atrativa ao público infanto-juvenil, a que se destina, apresente e ilustre o tema da homossexualidade a adolescentes e crianças, sem que os pais sejam devidamente alertados [...]".
Nova fiscalização
Uma nova fiscalização da Secretaria de Ordem Pública (Seop) da Prefeitura do Rio de Janeiro foi realizada na Bienal do Livro na noite deste sábado (7). Mais uma vez, os agentes informaram que não houve apreensões e que não foram encontradas ilegalidades ou irregularidades nas vendas de obras voltadas ao público infanto juvenil com a temática LGBT+.
— Nós utilizamos agentes de inteligência descaracterizados, que fiscalizaram, vistoriaram quase todos os estandes, diversas obras, e não foi encontrada nenhuma violação às normas legais que regulam a comercialização desse tipo de material para as crianças, adolescentes, não havendo nenhuma violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente — afirmou o coronel Wolney Dias, subsecretário operacional da Seop, ao G1.
PGR solicita ação do STF
No domingo (8), ainda pela manhã, a procuradora-geral da República e chefe do Ministério Público, Raquel Dodge, decidiu entrar na história com um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF). Com urgência, ela solicitou que fosse anulada a decisão de segunda instância, que permitira o recolhimento das obras.
Para Dodge, o recolhimento das obras "fere frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação, que são valorizados intensamente pela Constituição de 1988, pelos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e, inclusive, por diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal".
Ela ainda afirmou que a decisão da prefeitura do Rio de Janeiro, refutada em primeiro grau no Tribunal de Justiça do Rio e depois chancelada, em segunda instância, pelo presidente da instituição, " discrimina frontalmente pessoas por sua orientação sexual e identidade de gênero".
Dias Toffoli derruba censura
Na tarde de domingo (8), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, acata pedido de procuradora-geral da República e derruba decisão que permitia apreensão dos livros no Rio de Janeiro.
Toffoli declarou em sua decisão que a imagem de um beijo entre dois personagens da graphic novel Vingadores - A Cruzada das Crianças, da Marvel Comics, não representa nenhuma afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). "O regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias", afirmou, confirmando que não há justificativa para o recolhimento dos livros.
Dias Toffoli também criticou a forma como a decisão que permitia a censura tratava o tema da homossexualidade. "Findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade", declarou.