Por Pedro Cezar Dutra Fonseca
Professor da UFRGS, autor de Vargas: O Capitalismo em Construção e A Era Vargas: Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade
Getúlio Vargas, Meu Pai foi publicado em 1960 como livro de memórias de Alzira Vargas do Amaral Peixoto (1914–1992), filha de Getúlio Vargas (1882–1954). Abrangia até o final do Estado Novo, que coincide com o fim da II Guerra Mundial (1945). A nova edição é encorpada com escritos inéditos, alguns referentes a esse período, outros que vêm até 1954, ano do suicídio, e acrescida de um prefácio de Lira Neto, responsável pela recente biografia de Getúlio. Já a obra de Alzira é de difícil classificação: não se trata propriamente de bibiografia nem de autobiografia, tampouco de uma história. São relatos em primeira pessoa, reminiscências selecionadas sem a rigidez cronológica de um diário. A idolatria pelo pai não é escondida, e ela o defende mesmo em momentos difíceis, como a opção pela ditadura em 1937. No entanto, o que poderia ser o ponto fraco do livro – a parcialidade – torna-se, contraditoriamente, seu ponto mais forte: o olhar "de dentro" do poder, a convivência da vida pública com a vida privada, a política com a família, a percepção aguda de quem relata sem esconder o ponto de vista de participante ativa dos acontecimentos.
Alzira, dizem, era a filha do coração do pai. Dentre os cinco filhos, os homens optaram por carreiras científicas: medicina (Luthero), agronomia (Manoel Antônio) e química (o caçula Getúlio); a irmã Jandyra seguiu o padrão das moças prendadas da época: dona de casa. Já Alzira, mesmo em época na qual mulher nem votava, resolveu e seguir a carreira do pai: direito. Tornou-se informalmente sua auxiliar de gabinete, pois este se negava contratar parentes. Para não perder o eficiente trabalho da filha, que recebia ofertas de emprego, sua conselheira e a quem delegava a pasta do "cemitério" (demandas de políticos que arquivava), mais tarde Getúlio voltou atrás e a designou secretária oficial, com modesto salário. A filha mulher – a quem nas discussões chamava de "rapariguinha" – herdara do sangue são-borjense a vocação pela política: passou a infância numa cidade cindida entre chimangos e maragatos, com inexplicáveis, para ela, dois clubes para a elite; onde janelas se fechavam quando passava; ensinaram-lhe quem deveria e não deveria cumprimentar, e mesmo entre membros da família havia maragatos a serem evitados. Nesse ambiente em que se respirava política, a neutralidade ou indiferença era não só impossível, mas intolerável.
Dois momentos do livro são particularmente envolventes. Na atual edição, os dias abrangidos entre o atentado da Rua Toneleros e o suicídio do pai, no caso descrito pela própria filha. Mas ainda considero ponto alto a narrativa da tentativa integralista de derrubar Vargas em 1938, com invasão armada ao palácio presidencial. Com a conexão telefônica da Light e a luz cortadas, restava uma linha pela qual se implorava ajuda à polícia e às forças armadas, as quais, numa noite calma, demoraram horas para percorrer algumas quadras. A defesa do palácio teve que ser feita improvisadamente com as poucas armas. Alzira rejeitou fechar-se num quarto com as demais mulheres: foi atrás de revólver e metralhadora e auxiliou na defesa. No outro dia, tornou-se heroína do antifascismo, em suas palavras, uma "Joana d'Arc nacional", embora argumentasse: "Eu não sou heroína porcaria nenhuma". A consequência mais visível foi Vargas não mais confiar nas forças de segurança: criou uma guarda pessoal recrutando homens de sua confiança em São Borja. Gregório Fortunato, futuro mentor do atentado da Toneleros que deveria atingir Carlos Lacerda, chegou assim ao Rio de Janeiro.
A posição de Alzira, no mundo dividido em dois blocos do pré-Guerra, era francamente contra o nazifascismo e, por isso, odiada pela extrema direita. No Departamento de Imprensa e Propaganda da época, o temido DIP, era frequente imputar aos fichados ideologia que hoje soa ridícula: liberal-comunista. A denominação ilustra como os rótulos ideológicos são condicionados pelo contexto histórico. A referência era aos opositores ao Eixo Roma-Berlim e favoráveis à aliança anglo-americana com a União Soviética. No governo, os dois grupos disputavam espaço, e Alzira fazia a balança pender para os aliados. Por isso, os integralistas a acusavam de comunista; sofria bullying na faculdade, ao ponto de descobrir que o próprio líder integralista Plínio Salgado solicitara que a vigiassem e tentassem obter confissão sobre sua inclinação pelo comunismo. Alzira, todavia, dizia não ver muita diferença entre o "camarada" de Prestes o "anauê" de Plínio: dois "irmãos gêmeos". Filha do ditador, admirava os Estados Unidos e, principalmente, o que considerava ser a liberdade da mulher americana, uma vez que Hitler defendia a supremacia masculina numa hierarquia rígida, a qual reservava à mulher o papel de procriar. O livro deixa claro o que pesquisas recentes referendam: embora Vargas permitisse a duplicidade no governo para barganhar entre os dois lados do conflito, desde sempre a preferência era pela aliança com Roosevelt.
Mas nada é tão linear: Alzira viajou aos EUA, e mesmo lá assumiu um ar nacionalista. Fez questão de assistir ao show de Carmen Miranda na Broadway e, mais inusitado, foi recebida por Roosevelt no Salão Oval. Os EUA estavam de olho no Nordeste brasileiro, importante para chegar à África e à Europa. Walt Disney criou Zé Carioca, um inédito personagem tropical. Alzira, numa atitude inesperada, indagada sobre a hospitalidade, pediu a Roosevelt não para conhecer pontos turísticos, mas fábricas: compartilhava com o pai o sonho de ver seu país industrializado, e isso era o que os gringos mais tinham a nos ensinar. Mais tarde, confessou seu orgulho de, ao visitar o Chile, encontrar produtos brasileiros nas prateleiras. Da mesma forma, ainda que não fosse comunista, defendia distribuição de renda: não se reparte a pobreza, dizia ela, mas a riqueza. Com um misto de franqueza e ingenuidade, perguntou-se: "Se não há riqueza para repartir, de que viverão os pobres?".
Por isso se identificou com a frase do genial Ortega e Gasset que, ao passar pelo Rio com destino a Buenos Aires, ao desembarcar nesta última declarou que o presidente do Brasil era um homem sui generis, pois "fazia política de esquerda com a mão direita". Alzira relatava insatisfação com empresários e jornais, que faziam campanha contra a legislação trabalhista e os direitos por ela tidos como mínimos, tais como previdência, estabilidade, jornada de oito horas e férias (o que mostra que muita coisa não mudou). Em reunião com Assis Chateaubriand e o industrial Guilherme Guinle, na qual "choveram críticas" à legislação, registrou para a posteridade o contundente desabafo de Vargas, na saída, ao entrar no carro: "Burgueses burros! Estou tentando salvá-los e eles não entenderam". Fica clara a visão de longo prazo do estadista, para quem não haveria capitalismo sem as instituições capitalistas, em contraste com o desejo de lucro imediato dos empresários.
É impossível, ao terminar a leitura do livro, não pensar como contraponto o Brasil de hoje. Havia corrupção – uma das partes mais interessantes do recente filme Getúlio (de João Jardim, 2014) ocorre quando este indaga a seu irmão Benjamin como Gregório Fortunato poderia ter comprado uma fazenda se recebia apenas o salário da Guarda presidencial –, mas Alzira fez questão de evidenciar que Vargas se sentira traído. Relatou, então, as dificuldades financeiras da família: "Passamos por momentos difíceis, não direi de miséria (isso seria falso), mas de grande aperto, obrigando-nos a vender e a hipotecar bens e propriedades". Para ter uma casa em Petrópolis, comprou uma de madeira, pré-fabricada, com "três exíguos quartos, um banheiro e uma sala". Mais tarde, quando o orçamento permitiu, aumentou com uma parte de alvenaria. As férias eram em São Borja ou numa estação de águas de Minas Gerais. Admite que o salário de presidente era bom, mas a estância, administrada de longe, pouco rendia. A família era grande, assim como as exigências oficiais. Num dos poucos trechos em que recorre à ironia, comenta a dificuldade não só financeira caso desejasse se tornar "café society" (frequentadora de colunas sociais), embora não lhe faltassem convites: "Creio que somente uma absoluta incapacidade física me impediu de pretender entrar para o rol das 10 mais" (a baixa estatura dos Vargas).
Assim, o livro de Alzira, que tem o pai como principal personagem, revela ela própria como mulher forte, de certa forma precursora do feminismo. Rejeitou o papel sonhado pela maioria das moças da elite e da classe média de sua época, estudava e trabalhava, metia-se em política, discutia com parlamentares – todos homens –, chegou a estudar o almanaque do exército para influir na promoção dos generais e, desde o atentado integralista, resolveu que teria revólver para defesa pessoal. Defendeu o divórcio, tabu que lhe rendeu objeção do pai, que não queria mais confusões com padres.
Desde a juventude positivista, Vargas tornara-se adepto da rígida separação entre Igreja e Estado. Presidindo uma nação em que 95% da população se declarava católica, assumia-se como agnóstico (e não ateu, pois não podia provar nem rejeitar a existência de Deus) e avesso a ritos. Mais jovem, comprara briga ao nomear o primogênito de Luthero – o que levou o pároco de São Borja à recusa de batizá-lo –, decisão só revertida pelo apelo da mãe e de outras amigas carolas sob o argumento indiscutível de que o inocente não tinha culpa.
No papel de primeira-dama do Rio de Janeiro, durante a interventoria de Ernani do Amaral Peixoto, seu marido, sonhou colocar uma fábrica em cada cidade do Estado para gerar produção e emprego. Serviria de exemplo para o Brasil, pensava ela. Industrialização, e não filantropia, era a solução para o desemprego e a miséria. Sua atuação encorpa tese que defendo no mundo acadêmico sobre a consciência do projeto de industrialização do Brasil já na década de 1930, quando a literatura hegemônica, com Celso Furtado à frente, só a admite duas décadas depois. Do mesmo modo, reforça a tese de que não havia "luta de classes" entre industrialização e oligarquias rurais, pois o desenvolvimentismo industrializante contou com apoio do setor dirigente gaúcho, predominantemente agrário, que ascendeu com a "revolução" de 1930, contrariando análises esquemáticas. É patente, diante das evidências empíricas, que o grupo político mais enfático na defesa da industrialização partiu do Sul, e não de São Paulo.
A história não é um teorema que permite deduções a partir de pressupostos.
Finalmente, o livro põe em xeque a tese segundo a qual a nostalgia do passado é marca do pensamento conservador, como o de Burke e de Malthus. É impossível lê-lo sem constatar o que se perdeu pelo caminho, principalmente um setor dirigente com horizonte de construir o futuro do país com proposta inclusiva. Sim, já tivemos. O que nega ser este um mal nosso de origem, portanto, reversível – pelo menos um alento nestes tempos tão difíceis.