A discussão ganhou as redes sociais e a imprensa na esteira de uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em um material especial dedicado a discutir os limites do politicamente correto, no dia 30 de junho. O mercado editorial estaria adotando a função profissional de "leitor sensível", um leitor-consultor que, por credenciais de pertencimento a uma determinada minoria, leria certas obras a pedido da editora para evitar problemas que poderiam surgir da representação preconceituosa ou caricata de alguns grupos.
A questão é que, embora a manchete declarasse que o mercado editorial estava adotando os serviços desse tipo de profissional, na realidade esse ainda é um quadro distante do Brasil, com exemplos mais à mão na hiperprofissionalizada cadeia americana do livro. Por aqui, a produção de um livro já inclui, dependendo do caso, pareceristas de confiança que analisam peculiaridades de uma obra, recomendando a publicação ou não, apontando problemas de ordem estrutural e, se for o caso, sugerindo mudanças. Há também leitores especialistas responsáveis por dar ao autor e aos editores uma avaliação sobre a precisão e a propriedade do uso de termos técnicos ou de jargões de uma comunidade específica. Claro, isso na ficção: obras técnicas passam por avaliações de consultores sem que haja estranheza, dado que a revisão por pares é um dos pontos inegociáveis do pensamento científico. Mas em nenhum desses casos há uma orientação direta para caçar futuros alvos de "textões" ou boicotes.
– O mercado brasileiro ainda não tem o mesmo nível de questionamento que está ocorrendo nos EUA para esses tópicos mais imediatos envolvendo minorias, nossa própria legislação ainda é muito atrasada nesse sentido. Não é uma situação para agora – diz o diretor editorial da Estação Liberdade, Angel Bojadsen.
Se a existência de um "leitor sensível" como um profissional atuante por enquanto é mais especulação do que realidade, a polêmica suscitada pela especulação existe e provocou um bom número de manifestações em redes sociais, em blogues e artigos para imprensa ao longo da semana: a adoção desse tipo de recurso estaria fadada a enfraquecer o potencial desestabilizador da literatura como arte. E o desejo das casas editoriais de evitar problemas poderia diluir um conceito ideal de "verdadeira" literatura.
– A suposta existência de algo assim no mercado americano é uma reação das editoras a um novo ecossistema de leitores que têm expectativas e demandas modificadas. Tudo acaba desembocando na velha questão literatura comercial x criativamente livre, digamos assim. E claro que se houver um esforço excessivo em adequar o que se publica às expectativas do leitor isso acaba desembocando em uma literatura que não o surpreende. Mas desde que o autor tenha a palavra final, não é muito diferente do que já é feito por muitos autores: apresentar seu original à avaliação de leitores de confiança – diz o escritor Daniel Galera, autor de Meia-Noite e Vinte.
– A maioria dos escritores que conheço têm um ou dois "leitores betas", conhecidos, amigos, a quem se apresenta o original para ver se o texto funciona ou não funciona. Tenho amigos que leem para ver como o texto se estrutura. Não vejo como um primeiro passo na direção da censura se a escolha continuar sendo do autor – diz o escritor Samir Machado de Machado, de Homens Elegantes.
De fato, para além dos serviços de avaliações ou pareceres encomendados pela editora, não é uma prática incomum que escritores apresentem seus originais para leitores de confiança como uma espécie de avaliação final, tanto de questões estéticas ou literárias do conjunto quanto de aspectos mais específicos, como a propriedade e profundidade com que um universo estranho à experiência pessoal do autor está sendo abordada.
– Não sei de exemplos a respeito no Brasil para opinar, mas talvez esse leitor sensível não esteja aí para apontar reforço de estereótipos e obrigar alterações, mas para dialogar. Claro que isso é um ditame do mercado, porque de certa forma tudo é. Uns anos atrás, quando se publicavam pouquíssimos autores negros, mulheres, também era ditame do mercado: "livros desses autores não vendem", diziam. Então talvez seja isso também um ditame do mercado. Mas tenho a impressão de que essa busca por alguém externo talvez seja um reconhecimento de como é restrito o ambiente literário, os editores pertencem a um grupo de gente branca de classe média. Agora que cada vez mais os personagens trazem outros grupos, é uma questão de bom senso simplesmente procurar representar esses grupos com mais verdade – comenta Júlia Dantas, autora de Ruína y Leveza.
Jeferson Tenório, autor de O Beijo na Parede, acrescenta:
– A simples leitura por alguém com uma visão de mundo diversa não deveria assustar ninguém. Recebi recentemente originais de dois romances de autores brancos com personagens que eram negros, e eles tinham dúvidas se estavam cometendo algum erro na representação. Li e apontei algumas coisas não só nesse aspecto, mas não fui um "leitor sensível". Fui o que sempre houve, um leitor crítico que faz algumas sugestões, e a aceitação vai da vontade do autor. Eu mesmo terminei meu segundo livro e passei para leitura de duas mulheres, escritoras, de minha confiança, porque a personagem é uma mulher, então há coisas pelas quais eu não passei. Me parece haver problema se a editora quiser forçar o autor a aceitar determinadas mudanças como condição de publicação.
Na opinião de Angel Bojadsen, a polêmica a respeito do leitor sensível, embora parta de uma função quase inexistente no mercado brasileiro, não deixa de trazer, no íntimo, questões mais antigas: a pressão de determinados grupos para que o conteúdo de livros seja alterado ou suprimido; a vontade de tirar de circulação obras por razões ideológicas. Algo que tem se feito presente de modo mais intenso na literatura voltada para jovens e nas obras destinadas à escola. Mas, no Brasil, atualmente, ao contrário do que podem sugerir os dedos apontados para as "minorias" ao longo da discussão, é grande a pressão justamente pelo silenciamento de muitas dessas minorias:
– Um movimento como o Escola Sem Partido é uma discussão mais "quente" no momento brasileiro do que a de um leitor sensível. Há hoje pressões mais conservadoras para mexer nas leituras dos jovens, ações concretas para que obras sejam retiradas do currículo escolar. Isso não está distante – afirma Bojadsen.