Aos 70 anos, Conceição Evaristo conquistou reconhecimento dedicado a poucos escritores brasileiros – é hoje tema de uma exposição em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, e foi uma das primeiras atrações confirmadas para a próxima Flip, em julho. Nem sempre foi assim: até hoje a escritora guarda em casa exemplares das edições originais de seus primeiros livros, que só conseguiu lançar a partir de 2003, de forma independente e sem distribuição adequada. Só agora esses títulos ganham uma edição acessível ao amplo público leitor, com o relançamento de Becos da Memória e Ponciá Vicêncio pela Pallas.
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Natural de uma favela de Belo Horizonte, Conceição se tornou professora, com doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, mas não aceita o discurso de que a meritocracia supera desigualdades no Brasil. Em entrevistas, costuma dizer que ela é a exceção que confirma a regra. E é a respeito de quem vive sob a regra que a autora escreve: seus personagens são oriundos de populações negras e pobres, marginalizados que muitas vezes sequer cogitam a possibilidade de mudar de vida.
Escrito entre 1987 e 1988, Becos da Memória só foi lançado quase 20 anos depois, em 2006, após a escritora publicar poemas e contos em revistas e ter conseguido boa repercussão com Ponciá Vicêncio (2003). O romance tem como foco a vida de Maria-Nova, jovem sensível e um tanto melancólica, que se assusta e se maravilha com as histórias das pessoas próximas de si, familiares e outros habitantes da favela em que nasceu. O espaço, no entanto, está em risco por conta de uma construtora que, aos poucos, desapropria quem vive nos barracos para ali construir um condomínio.
Mais do que um documento sobre uma realidade social, Becos da Memória é um singular romance de formação. Estão ali as angústias de quem vê a idade adulta se aproximar, bem como o calor das descobertas do corpo. No entanto, diferentemente das narrativas de formação mais conhecidas, como Demian, de Hermann Hesse, ou O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, não é por meio de viagens ou pela descoberta de leituras que a protagonista compõe sua identidade e seu modo de encarar o mundo. É a partir do que ouve e observa em torno de si que Maria-Nova consegue compreender como sua família se formou e, a partir de exemplos próximos, descobre em si a força para lidar com seus desejos e dificuldades.
O passado familiar também é um dos temas centrais de Ponciá Vicêncio, romance que leva o nome de sua personagem principal. Ponciá também vive em um ambiente urbano, onde o passado rural de sua família é apenas um espectro distante. Seu sobrenome foi herdado do dono das terras nas quais seus antepassados viviam como escravos – ali, todos eram despojados de nomes de família, já que eram posse de um mesmo senhor.
Não tendo um nome que ligue a história de seus familiares, Ponciá carece de raízes para fortalecer sua identidade. Ela também enfrenta sucessivas gestações frustradas, em que perde a criança que gera. Sem conseguir se apoderar do passado, não é capaz de criar gerações para o futuro.
Além dos dois romances inaugurais, que a editora Pallas acaba de relançar, Conceição Evaristo também teve há pouco o volume de contos Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011) e Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008) republicados pela Malê, que lançou em 2016 Histórias de Leves Enganos e Parecenças. É uma oportunidade de conhecer o trabalho de uma escritora que, com propriedade, escreve sobre realidades que muitas vezes ficam de fora da literatura brasileira.