Ievguêni Zamiátin (1884 – 1934) foi um satirista russo do início do século 20. Ele foi também um dos escritores mais influentes de que você talvez nunca tenha ouvido falar, o que pode mudar com a bem cuidada edição que a editora Aleph está lançando agora de seu romance
Nós é narrado por D-503, um matemático que trabalha na construção de uma espaçonave destinada à exploração do cosmos para encontrar civilizações alienígenas "que ainda se encontrem em estado selvagem de liberdade" e submetê-las ao "jugo benéfico da razão". No século 26, em que vive o protagonista, 0,2% da humanidade sobreviveu à grande guerra de 200 anos e, agora, habita uma cidade cercada por um muro de vidro verde, alimenta-se de comida sintética e vive sob o jugo do Estado Único, um regime ditatorial personificado na figura do Benfeitor.
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D-503 pretende escrever um registro para ser incluído na expedição especial louvando as belezas de sua sociedade, erigida sobre princípios matemáticos. Todas as horas do dia são planificadas em tabela (mesmo as autorizadas ao sexo) e todos os habitantes vivem em apartamentos de vidro, o que facilita o policiamento de suas atividades por uma casta de "guardiões da revolução". O Estado Único é o objetivo final de toda a atividade humana, os cidadãos têm apenas duas horas por dia para se dedicar a suas próprias atividades – e muitos as aproveitam marchando em público ao som de hinos patrióticos. Transgressões individualistas são punidas com execuções públicas, e D-503 só vai perceber o caráter totalitário da sociedade em que vive ao conhecer uma mulher irreverente com um pendor para a rebeldia.
Por ser uma obra crítica ao futuro brilhante de uma sociedade estruturada em princípios científicos, Nós foi proibido em língua russa durante todo o período que durou o regime soviético – foi contrabandeado para os EUA pela mulher do autor durante uma viagem e acabou publicado primeiramente em inglês, em 1924. Mas não era a revolução bolchevique a sociedade descrita por Zamiátin. Engenheiro de formação que havia vivido uma temporada em Londres, o autor escreveu a obra antes da ascensão plena do stalinismo, e mirava antes no pesadelo desumanizador da Revolução Industrial capitalista – embora tenha descrito uma sociedade bem semelhante ao stalinismo que ainda viria.
Edição inclui texto de Orwell
A ideia da Utopia como uma sociedade idealizada sem os vícios da sociedade real é antiga como a literatura. Na maioria de suas manifestações, inclusive a que deu nome ao conceito, a de Thomas Morus, esse lugar maravilhoso seria um paraíso estabelecido por um advento religioso ou preservado da civilização humana. É no século 20 que, devido ao desenvolvimento tecnológico vertiginoso, ganha mais voz o ponto de vista contrário, o de que uma sociedade cada vez mais técnica e menos humana poderia descambar em um pesadelo totalitário – o que gerou um dos subgêneros mais interessantes da literatura do século 20: o das distopias futuristas.
Nós é um dos romances pioneiros do estilo – e um dos mais influentes. A bem cuidada edição de capa dura lançada agora pela Aleph inclui um ensaio de George Orwell publicado na imprensa inglesa em 1946, em que Orwell aponta, com razão, que Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932, "deve, em parte, originar-se dele": "A atmosfera dos dois livros é semelhante e, em linhas gerais, é o mesmo tipo de sociedade que está sendo descrito". Reside aí a ironia de que, apenas dois anos depois desse texto, Orwell concluiria 1984, um romance sobre o qual poderiam ser ditas as mesmas palavras que ele usou ao comparar Admirável Mundo Novo com a obra precursora de Zamiátin.
NÓS
Evguêni Zamiátin
Romance.
Tradução de Gabriela Soares. Ed. Aleph, 344 páginas, R$ 50,64 (impresso) e R$ 42,90 (Kindle).
Cotação: 4/5 (muito bom)