Desde que se radicou no Brasil, em 1984, a professora de literatura e filosofia da UFRGS Kathrin Rosenfield, de origem austríaca, surpreendeu-se com a permanência do mito de Antígona no imaginário latino-americano, do movimento das Mães da Praça de Maio, na Argentina, ao pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil. Chamou sua atenção certa apropriação ideológica da personagem como símbolo da luta dos oprimidos contra os opressores – na tragédia de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o irmão Polinice, contra a vontade do rei Creonte.
– Antígona se tornou uma heroína, mas a história é mais sutil e provavelmente mais próxima dos problemas que enfrentamos no Brasil hoje. Como recomeçamos quando não temos mais bonzinhos de um lado e mauzinhos de outro, mas um caos a tal ponto que todo mundo está desautorizado? – questiona a professora.
Lendo a peça de Sófocles por meio da tradução realizada pelo poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770 – 1843), Kathrin entende a história não como um embate entre uma santa e um poderoso, mas entre duas linhagens de nobreza que disputam legitimidade. O argumento está exposto no livro Antígona, Intriga e Enigma – Sófocles lido por Hölderlin (Perspectiva), publicado no final do ano passado, que terá lançamento em Porto Alegre nesta quinta-feira (30/3), às 19h30min, no Instituto Ling, com entrada franca.
Como um bom vinho que melhora com o tempo ou uma redução gastronômica que concentra sabores, nas imagens evocadas por Kathrin, o livro traz uma síntese de um ensaio de maior fôlego lançado em 2000, Antígona – De Sófocles a Hölderlin (L&PM), esgotado nas livrarias.
A autora avalia que o lançamento é mais maduro e acessível do que o volume anterior, no qual havia se cercado de uma ampla fundamentação intelectual para contrapor sua tese frente à autoridade dos helenistas, de um lado, e dos especialistas em Hölderlin, de outro.
Da Tebas trágica ao Brasil de hoje
Foi o início de uma série de trabalhos. Em 2002, Kathrin publicou o livro Sófocles & Antígona pela coleção Filosofia Passo-a-passo, da editora Zahar. Dois anos depois, orientou o diretor Luciano Alabarse em uma encenação da peça em Porto Alegre, com tradução de Lawrence Flores Pereira. A versão de Pereira apareceu em livro em 2006, em edição da Topbooks, com introdução e notas de Kathrin. Ele participará do evento nesta quinta lendo trechos da tradução.
Para Kathrin, Hölderlin foi um dos mais rigorosos leitores de Sófocles ao compreender que a mente grega funcionava de maneira diferente da cristã. No processo histórico de simplificação da tragédia no clichê entre o bem e o mal, perdeu-se a noção de deinos, conceito grego que significa, ao mesmo tempo, maravilhoso e terrível. Essa é Antígona, argumenta a professora:
– É uma situação muito contemporânea, que admiramos quando assistimos a um bom thriller no cinema. Não queremos mais histórias em que uns são bons e outros são maus. Nos filmes de detetive, o interesse do espectador moderno é sempre pelas figuras ambíguas, que oscilam entre os dois extremos.
As última três décadas de história do Brasil, que coincidem com a experiência de Kathrin no país, oferecem um cenário apropriado para reler Antígona sob a chave que ela propõe. Durante este período, a sociedade assistiu à ascensão e à queda de fenômenos eleitorais. A crescente descrença da população em relação às representações políticas de diferentes espectros ideológicos comprova que o Brasil contemporâneo vive a questão da legitimidade do poder como a Tebas trágica. Kathrin compara:
– Nosso momento é muito semelhante ao de Antígona. Estamos em uma confusão mental. Se tivermos que intervir politicamente, por quem optaríamos? Não temos mais ninguém. Como se constrói a legitimidade assim?
Constituindo um díptico, o livro Antígona, Intriga e Enigma terá sequência com um estudo sobre Édipo que a autora pretende publicar também pela editora Perspectiva entre o final deste ano e o início do próximo.
ANTÍGONA, INTRIGA E ENIGMA – SÓFOCLES LIDO POR HÖLDERLIN
De Kathrin H. Rosenfield
Ensaio. Perspectiva, 224 páginas, R$ 47.
Lançamento nesta quinta-feira (30/3), às 19h30min, no Instituto Ling (Rua João Caetano, 440), fone (51) 3533-5700, em Porto Alegre. Entrada franca.