Cearense radicado em São Paulo, Lira Neto se aventurou a contar os primórdios do samba no Rio de Janeiro em Uma História do Samba: As Origens. Nesta conversa, o jornalista, autor da trilogia Getúlio, fala sobre a motivação para pesquisar o gênero musical, compara a consolidação do Carnaval carioca com o advento dos CTGs no Rio Grande do Sul e opina a respeito do debate sobre apropriação cultural.
Como um cearense se encorajou a escrever sobre a história do samba?
Um cearense, radicado em São Paulo e com cintura de Playmobil, eu acrescentaria (risos). Mas, da mesma forma que não tive receio de biografar Getúlio Vargas, por um suposto temor de mexer com algo que é patrimônio dos gaúchos, também não tive receio de escrever sobre o samba. Não estou interessado em me tornar um sambista, sou uma pessoa que tem curiosidade pela história e pelos personagens que a compõem. É meu olhar de biógrafo, de jornalista, debruçado sobre o tema. Também não quero ser um especialista em música, não tenho nem instrumental para isso. A minha sedução é pela narrativa que os indivíduos construíram e pela possibilidade de oferecer ao leitor alternativas ao conhecimento já consolidado.
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A discussão sobre lugar de fala e apropriação cultural, muito em voga atualmente, não o intimidou?
Essa discussão sobre apropriação cultural e lugar de fala, como muitas que estão no cenário nacional de hoje, peca pela estridência, pela pouca argumentação. Está tudo muito polarizado, obedecendo uma lógica binária. É um debate com mais calor do que luz, que tem gerado apenas o acirramento de ânimos e a invalidação do caminho do diálogo, que é o único possível.
No seu livro, o samba se relaciona com o contexto, não é apenas apropriado por ele.
É por isso que a discussão é muito mais complexa. Como determinar quem apropria e quem é apropriado? Procuro ver as coisas sob um ponto de vista mais antropofágico, para citar Oswald de Andrade. Tento ver as coisas em sua dialética interna, no seu jogo interno de contradições.
Se houve, qual é a influência do Sul na criação do samba?
Sem dúvida havia no Rio um grande caldeirão cultural. Aquilo foi uma grande mistura. Você querer dizer o quanto entrou de cada lugar é complicado. É algo que foi feito ao longo de gerações, por meio de intercâmbios e assimilações, não dá pra dizer o quanto entra de cada região.
No final dos 1930, a Era Vargas tentou assimilar o samba e o Carnaval como parte da identidade brasileira. Nos anos 1940, os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) também buscaram forjar uma identidade gaúcha. Há como traçar um paralelo entre os dois movimentos?
Não quero me meter numa briga que não é minha (risos), mas sem dúvida isso acontece não só no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, mas também em São Paulo e em outras regiões. No primeiro volume da minha série sobre Getúlio, mostro um pouco como ocorreu a construção desse mito do gaúcho, que não difere muito de toda a criação de mitos regionais, muito lastreados em estereótipos, em uma construção artificial, muitas vezes herdada do romantismo, de uma literatura idealizadora. Já não é mais uma caracterização, é quase uma fantasia, assim como teve a fantasia do malandro, o cara com camisa listrada, chapéu de palhinha e a calça branca, ou de paletó de linho branco e sapato bicolor. A cultura popular se torna folclore.
Qual é a diferença entre cultura popular e folclore?
Folclore é o triunfo da pasteurização do potencial criativo da cultura popular. Quando você folcloriza, transforma ou inventa uma tradição, você tira o potencial de insubmissão e rebeldia que a cultura popular tinha frente à cultura de elite. No entanto, isso não significa que o samba deixou de ser samba. Isso é fascinante: o samba, mesmo submetido à lógica de consumo, mesmo tendo perdido algumas de suas características, ganha outras e se reelabora. Ele agoniza, mas não morre.