Abrir uma janela do navegador e, à sua revelia, receber uma saraivada de opiniões de pessoas que você às vezes nem sequer conhece é, digamos assim, um "luxo" de hoje. Em 1999, ninguém escrevia textão no Facebook. Com conexões discadas e a internet como comunidade ainda engatinhando no Brasil, a explosão dos blogs estava a anos de distância. Mesmo assim, fazendo do tédio provocado por uma greve de professores da UFRGS uma oportunidade criativa, um grupo de amigos deu seu jeito de alcançar amplo público mandando seus pitacos e primeiras incursões literárias por e-mail. Preto no branco, sem imagens, look do dia ou comentários no YouTube: era esse o CardosOnline, e-zine que começou a circular em 1998, criação do então estudante de jornalismo André Czarnobai – cujo apelido Cardoso deu nome à coletânea semanal de textos – com mais sete amigos como colunistas fixos. E há 15 anos, depois de a lista de destinatários do CardosOnline bater os 5 mil endereços, os convivas decidiram, em consenso, encerrá-lo.
Com essa data como mote, quatro dos então aspirantes a escritores que deram no e-zine os primeiros passos em direção à literatura, participam neste domingo do debate 1999 não tem fim, às 18h30min, no Auditório Barbosa Lessa do CCCEV (Rua dos Andradas, 1.223). São eles, além de Cardoso, os escritores Clara Averbuck, Daniel Galera e Daniel Pellizzari. O time de romancistas publicados (que autografa na Praça de Autógrafos seus lançamentos mais recentes em sessão logo depois, às 20h) demonstra o valor do CardosOnline como embrião de boas vozes literárias gaúchas, mas, ao contrário da brincadeira inscrita no nome da mesa, é fato entre eles que 1999 acabou sim – que bom.
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– O ano certamente acabou, mas ficou na memória de muitos integrantes da minha geração aqui em Porto Alegre como um ano especial, se não o maior ano de suas vidas – diz Daniel Galera, que autografa o recém-lançado Meia-noite e vinte (Companhia das Letras), no qual o CardosOnline é fio condutor, com outro nome – Para mim, foi o ano do primeiro namoro, das festas mais incríveis, e também do início de uma relação mais séria com a escrita de ficção, que definiu meu trabalho e vida ate hoje. O século 21 trouxe uma enxurrada de crises e responsabilidades para aquela geração, então faz sentido essa brincadeira de cultuar 1999 como uma espécie de paraíso perdido. Não se trata de querer voltar para aquela situação, é claro, até porque é impossível. Os desafios e prazeres estão no presente e no futuro. Mas recordar e celebrar aquela euforia é divertido e pode ajudar a não se acomodar no momento atual – discorre o escritor, cuja obra de estreia, Dentes guardados (2001), é composta quase integralmente por contos publicados em primeira mão no COL, como era chamado. E mais: mesmo a editora que publicou Dentes guardados foi fruto do CardosOnline: a Livros do Mal foi uma joint venture fundada por Galera com Pellizzari e Guilherme Pilla, também colaborador do zine.
As amizades da época duram até hoje – alguns mais próximos, outro um pouco mais distantes, troquem (pasme) e-mails até hoje. Mas relembrar o COL é relembrar também, de certa forma, uma rede social que existiu e era pulsante na Porto Alegre do triênio em que ele existiu. Seus colunistas organizavam festas – o Bailão do CardosOnline teve sua última edição em 2008, em um espaço alugado em cima de uma loja de colchões na Avenida Osvaldo Aranha – e atraíam atenção para a cultura que começava a ser produzida e difundida via internet, muito antes da indústria dos blogs e dos best-sellers escritos por youtubers.
– Foi um dos primeiros projetos em que as pessoas se inspiraram, porque era simples, uma coisa muito sincera, sem filtros, acho que inaugurou um pouco essa nova linguagem que temos hoje em que as pessoas vivem em um ambiente de extrema liberdade de expressão, em que podem falar o que querem, onde querem e do jeito que querem. E atingindo, muitas vezes, mais leitores do que as mídias tradicionais. O que não era o caso na nossa época, nós éramos muito incipientes, era ridículo, pequeno. Mas hoje há youtubers com mais audiência do que televisão, blogs com mais audiência do que jornais. Acho que o CardosOnline acabou sendo tão forte e é lembrado até hoje porque foi pioneiro – diz o eterno editor André Czarnobai, que conserva até hoje amizades por várias partes do Brasil por conta desse pioneirismo.
Muitos amigos e causos que rendem horas de conversa, com direito a casamento entre leitores pontuam as lembranças dos ex-colunistas do COL – mas o material enviado religiosamente a cada semana, esse é outra história. Czarnobai é taxativo: lembra pouco, quase nada dos textos que escreveu à época, não tem orgulho ou vergonha de nada em especial, enquanto Galera faz suas ressalvas. Ambos descartam a ideia de reviver o conteúdo do zine no formato de livro, pelas razões que Galera sintetiza:
– A diferença de idade e a evolução do trabalho iluminam a precariedade e o narcisismo juvenil de boa parte dos textos, que faziam todo o sentido na época e no contexto, mas hoje podem soar como artefatos de um outro universo. Tenho vergonha de coisas como os textos em que me gabo de excessos etílicos e sexuais, por exemplo, sabendo bem o quanto de exagero ou ingenuidade eles continham. Tenho orgulho de certos contos e relatos pessoais em que expus angústias e vulnerabilidades com algum requinte literário, e também de alguns textos sobre música. Considerando tudo, acho que não faria muito sentido republicar aquele material hoje. Seria mal compreendido e as tosquices saltam demais aos olhos. Mas tampouco sou a favor de negá-lo ou apagá-lo. São um registro histórico importante e divertido, se lidos da maneira correta. Gosto da ideia de que ele circula de maneira um pouco invisível. Quem quiser ler, encontra.
1999 não tem fim
Mesa com André Czarnobai, Clara Averbuck, Daniel Galera e Daniel Pellizzari sobre os 15 anos do fim da publicação virtual CardosOnline, que circulou entre 1998 e 2001, no Auditório Barbosa Lessa do CCCEV, às 18h30min.
O evento é seguido por uma sessão tripla de autógrafos, às 20h.
Para ler os colunistas
Toureando o diabo
De Clara Averbuck
Independente, 146 páginas, R$ 50.
Autógrafos domingo, às 20h, na Praça de Autógrafos
Meia-noite e vinte
De Daniel Galera
Companhia das Letras, 208 páginas, R$ 34,90.
Autógrafos domingo, às 20h, na Praça de Autógrafos
Digam a satã que o recado foi entendido
De Daniel Pellizzari
Companhia das Letras, 184 páginas, R$ 39,90Autógrafos domingo, às 20h, na Praça de Autógrafos