Outorgar o principal prêmio literário do mundo a Bob Dylan, como fizeram os jurados do Nobel deste ano, presta impressionante reconhecimento ao valor artístico dos compositores da canção popular. Chico e Caetano, para ficar nos nossos nomes mais óbvios, sempre foram tão poetas quanto Drummond e Cabral. Negar isso é tentar tapar o sol. A discussão distintiva entre letristas e poetas nunca me convenceu. Papo mais para a academia do que para a vida real.
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O Brasil sempre teve excepcionais poetas dedicados à canção. A palavra cantada se materializou como poderoso instrumento do reconhecimento à própria identidade nacional, voz de resistência e luta, prova dos nove da alegria, farol a iluminar os breus nacionais. Pra que é que serve uma canção como essa?, a partir de introdução minuciosa e inspirada do poeta Eucanaã Ferraz, é um livro debruçado exclusivamente sobre letras da gaúcha Adriana Calcanhotto, dividido em cinco sensíveis eixos temáticos (Você, Agora, Onde, Olhar e Verso).
Singular e plural, Adriana é a mais sofisticada compositora brasileira de sua geração, demonstrando, ao longo desses anos, maturidade, invenção e liberdade em permanente expansão. Sua obra flerta com o risco e a fronteira de diferentes linguagens artísticas, unindo o experimentalismo à mais nobre tradição da canção brasileira. John Cage e Roberto Carlos.
Musicando nomes como Mário de Sá-Carneiro, Augusto de Campos, Antônio Cícero e Waly Salomão, deglutindo Gertrude Stein e Hélio Oiticica, sua assinatura é, ao mesmo tempo, sofisticada e popular. Entre solidez, errâncias, escolhas, acasos e estranhamentos, as canções de Adriana são espelhos do nosso tempo. Arrisquei respostas à pergunta do título do livro. Seguem aí: para cantar, guardar no coração, respirar melhor. Adriana e Eucanaã merecem sua ida à Feira. Vá lá.