Um dos grandes escritores da atualidade, o inglês Ian McEwan declarou certa vez, em uma entrevista à revista literária Paris Review, em 2002, que narrar uma história pelo ponto de vista de uma criança era um desafio técnico. Ao comentar a construção de sua personagem Briony Tallis, a precoce criança no centro de seu aclamado romance Reparação, McEwan afirmou:
"É sempre problemático usar crianças na ficção – as restrições de ponto de vista podem se tornar uma camisa de força. Queria ser capaz de retratar a mente de uma criança fazendo uso de todos os complexos recursos de linguagem de um adulto – como fez (Henry) James em Pelos olhos de Maisie. Não queria as limitações do vocabulário infantil".
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Em Reparação, McEwan encontrou a solução perfeita na surpresa final do livro: a revelação de que a narrativa até ali é uma ficção escrita pela própria Briony quando mais velha. Em sua obra mais recente, Enclausurado (tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras. 200 páginas, R$ 39,90 impresso e R$ 31,90 em e-book) McEwan implode essa escada de segurança ao produzir um romance inteiramente narrado por um feto ainda não nascido – mas sem ceder às limitações que essa condição naturalmente impõe ao narrador.
Apertado no útero nas últimas semanas de gestação, suspenso de cabeça para baixo em líquido amniótico, o protagonista de Enclausurado é um Hamlet contemporâneo aprisionado no útero de sua mãe, ouvindo impotente a conspiração desenvolvida pela mãe, Trudy, e pelo tio, Claudius, para matar seu pai, um editor e poeta. Toda a narrativa se concentra na voz do bebê ainda sem nome, um ser hiperculto cheio de informações sobre um mundo exterior que nunca viu, absorvidas nos podcasts que sua mãe costuma ouvir o dia inteiro.
Trudy e Claudius, como na peça de Shakespeare (de onde sai também o título do livro, uma referência do príncipe dinamarquês a ser o "rei do universo" mesmo "enclausurado dentro de uma noz"), conspiram porque são amantes. Querem se livrar do pai do bebê para poder vender a casa em que a mãe atualmente vive sozinha, já que o casal está "dando um tempo". Enquanto isso, o tio Claudius é uma visita constante para sessões eróticas que são o terror do (muito) jovem narrador, preocupado em desviar sua cabeça do pênis do tio no momento do rala e rola. Quanto não está tentando escapar da luxúria, o feto reflete sobre sua vulnerabilidade e impotência para impedir o complô dos amantes, num casamento recorrente na obra de McEwan: humor e desespero.
Quem acompanhou apenas a fase mais recente da carreira do autor, a partir da grande comédia de humor negro Amsterdam (1998), seguindo com os estupendos Reparação (2001) e Sábado (2006), os bons Solar (2010) e A balada de Adam Henry (2014) e os medianos Na praia (2007) e Serena (2012), talvez se sinta desconcertado. Mas Enclausurado é uma ótima síntese das duas pontas de sua trajetória: o grotesco sarcástico de obras como O jardim de cimento e Ao Deus dará e a técnica apurada com que McEwan casa análise psicológica acurada e o mal estar de seus personagens no mundo como ele é.
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FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Ian McEwan estará em Porto Alegre na segunda-feira, 24 de outubro. O encontro será às 19h45min no Auditório Araújo Vianna (Osvaldo Aranha, 685). Os ingressos estão esgotados. As próximas palestras serão de Michel Houellebecq (7 de novembro) e Jan Gehl (21 de novembro).
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e parceria cultural PUCRS. Empresas parceiras: Liberty Seguros, CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa, Sulgás e Stihl. Parceria institucional Hospital Mãe de Deus, Fecomércio e Unicred e apoio institucional UFCSPA, Embaixada da França e prefeitura de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS.