É o verão de 2014 em Porto Alegre. Os termômetros ultrapassam os 40ºC, e as longas temporadas de sol inclemente fazem a água sair quente (não morma) das pias e dos chuveiros. Após madrugadas insones devido ao calor, moradores não conseguem pegar o ônibus para ir ao trabalho porque uma greve do transporte público se estende por semanas em infrutíferas negociações.
Foi um verão que muitos porto-alegrenses gostariam de esquecer. Mas não conseguirão, se depender de Daniel Galera. É dessa temporada de calor e abafamento que parte Meia-noite e vinte, novo romance do autor de livros como Mãos de cavalo (2006) e Barba ensopada de sangue (2012), este último vencedor do prestigiado Prêmio São Paulo de Literatura. O volume chega às livrarias na próxima semana.
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A narrativa intercala relatos em primeira pessoa de três amigos. Aurora, Antero, ambos na casa dos 30 anos, e Emiliano, 42, reencontram-se depois da morte de um quarto companheiro, o escritor Andrei Dukelsky, o Duque. "Um dos maiores novos talentos da literatura brasileira contemporânea" (expressão que também serve ao próprio Galera), Andrei começou a carreira no zine digital Orangotango, junto ao trio que compõe o livro, mas cada um dos integrantes segue destinos diferentes.
Qualquer semelhança do Orangotango com o Cardosonline, publicação eletrônica que Galera ajudou a criar em 1998, não é mera coincidência. Mas o autor assegura que não estamos diante de um romance biográfico:
– É evidente que Orangotango é uma referência ao Cardosonline. Mas o que tento é investigar como os valores e as expectativas gestados naquela época evoluíram até hoje, tendo minha experiência própria como ponto de partida, não necessariamente de chegada.
A morte estúpida de Duque, baleado em um assalto naquele início de 2014, choca os três amigos, levando-os buscar na companhia mútua algum conforto uns nos outros após o enterro. Assim como a cidade, cada um dos personagens demonstra estar na iminência de uma crise. Antero, que carrega a imagem do filho de dois anos na tela do iPhone, é um empresário de sucesso, mas, depois de entrar uma em manifestação por curiosidade “etnográfica”, tem um rompante digno de black bloc. Aurora carrega no celular não a foto de um filho, mas a imagem das canas-de-açúcar que pesquisa como bióloga, embora revele não ter motivação para seguir no trabalho. Já o telefone do jornalista Emiliano não para de tocar, com um editor tentando convencê-lo a escrever um livro sobre Duque.
O primeiro trecho do romance, com um relato de Aurora, é menos impactante, mas a personagem cresce ao longo da leitura – seu envolvimento com Antero após o enterro de Duque tem consequências para a narrativa. Apesar dos personagens terem perfis distintos, Galera consegue criar vozes convincentes, e é difícil que algum leitor com mais de 30 anos não se identifique com (pelo menos) um deles.
Meia-noite e vinte é um livro sobre uma geração que cresceu com a segurança da economia estável e a euforia gerada por uma internet que engatinhava no Brasil, gerando possibilidades criativas quase infindáveis. Com a retração econômica e o loteamento da rede por grandes corporações, esses novos adultos vivem um momento em que é preciso reinventar suas paixões e seus desejos. A reinvenção, nesse caso, se dá pelo reencontro. Ou pelo encontro – do leitor com Aurora, Antero e Emiliano.