Alguns livros podem se transformar ao longo do tempo. Raízes do Brasil é um deles. Um clássico obrigatório para quem quer entender a história do país, o ensaio lançado em 1936 sofreu cerca de 200 alterações, entre emendas e supressões, para sua segunda edição, em 1948. Incansável, seu autor, Sérgio Buarque de Holanda, revisou o texto até quando pôde, lançando sua edição definitiva – a quinta – apenas em 1969.
A história dessas mutações está finalmente acessível ao público com Raízes do Brasil: edição crítica, publicação que agrupa o texto definitivo, oito ensaios de diferentes acadêmicos e notas que expõem e discutem cada uma das mudanças realizadas ao longo do tempo. O lançamento nacional será em Porto Alegre, neste sábado, com o seminário Brasil do Raízes, que reunirá, no Salão de Festas da UFRGS, organizadores da reedição, professores e psicanalistas para debates ao longo do dia (confira a programação abaixo). O evento promovido pela UFRGS e pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) já está com as inscrições gratuitas esgotadas.
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– A crítica estava esperando uma edição que trouxesse de forma sistemática essa varredura que o Raízes... foi sofrendo. É até estranho que uma publicação assim não tenha sido lançada antes – opina a historiadora Lilia Schwarcz, uma das organizadoras do volume ao lado do professor de literatura Pedro Meira Monteiro.
As pesquisas se iniciaram há cerca de três anos. No meio do processo, a equipe descobriu que um colecionador de livros guardava o exemplar da primeira edição de Raízes do Brasil no qual Sérgio Buarque anotou as mudanças para a segunda impressão. Quando soube da história, Monteiro não acreditou:
– Duvidei porque achava que seria impossível reunir todas as modificações em um livro só. Não eram coisas que caberiam nas margens do texto, por exemplo. Eram parágrafos inteiros, páginas. Para meu espanto, o exemplar era verdadeiro. Sérgio Buarque colava anotações que se abriam como verdadeiros origamis.
Mais do que demonstrar as alterações sofridas pelo livro, a nova edição de Raízes do Brasil reflete sobre o que as teria motivado. Para Lilia Schwarcz, essa é uma importante contribuição do trabalho:
Mais do que demonstrar as alterações sofridas pelo livro, a nova edição de Raízes do Brasil reflete sobre o que as teria motivado. Para Lilia Schwarcz, essa é uma importante contribuição do trabalho:
– O que essa nova edição prova é que as alterações não foram perfumaria. Foram substanciais. Sérgio Buarque procura distanciar o livro de qualquer fantasma do autoritarismo e vesti-lo com uma capa liberal e democrática.
Entre as alterações visíveis da primeira para a segunda edição do livro, Lilia e Monteiro destacam a supressão de notas com menções a teóricos identificados com o autoritarismo, como o alemão Carl Schmitt (1888– 1985), que veio a se vincular com o nazismo depois da publicação do ensaio.
Votação do impeachment foi “espetáculo de cordialidade”
Uma das ideias mais conhecidos de Raízes do Brasil, a de que o brasileiro é um “homem cordial”, também foi revista pelo autor ao longo das edições, para afastar más interpretações.
– Sérgio Buarque não diz que o homem cordial é bondoso, e sim que pode ser bondoso, mas que também pode fazer muitos inimigos. Ele se pauta na hierarquia, na diferença. Sobretudo, cordial vem da mesma raiz de coração, e esse é um problema dos brasileiros, que só lidam com a esfera privada, não operando bem com o ritual público – explica Lilia.
A partir da ideia de cordialidade, a historiadora demonstra que, mesmo 80 anos depois de lançado, Raízes do Brasil permanece atual:– Sérgio Buarque diria que o espetáculo que se viu no Congresso quando houve a votação do impeachment foi um espetáculo de cordialidade, porque todos votaram com o coração, pensaram no bem privado, e não no público. Votaram pela sua família, pela sua cidade e por seu eleitorado porque eram seus, nunca pensando em nome do bem público.
Revisões e retirada de referências
Os organizadores da nova edição de Raízes do Brasil tiveram acesso a exemplares do livro usados pelo próprio Sérgio Buarque de Holanda para suas revisões. A primeira edição do livro sofreu cerca de 200 alterações, todas anotadas em um único exemplar. O historiador datilografava novos parágrafos ou páginas e os colava onde deveriam ser agregados. Também são perceptíveis muitos cortes de texto. Entre a primeira edição, de 1936, e a segunda, de 1948, uma das preocupações do autor era rever sua desconfiança a respeito do liberalismo e afastar qualquer sombra de teóricos totalitaristas do texto. Na reprodução acima, é possível ver uma nota rasurada sobre o alemão Carl Schmitt, que aderiu ao quadro nazista, indicando sua exclusão para a segunda tiragem de Raízes do Brasil.
– Em 1948, você pode olhar para trás e ver que aconteceu a II Guerra, ver no que deu a aposta totalitarista, no Estado orgânico sem fissura. A partir de então, Sérgio Buarque não sustenta mais seu desconforto com o liberalismo – explica o organizador Pedro Meira Monteiro.
PROGRAMAÇÃO
O seminário Brasil do Raízes será realizado neste sábado, no Salão de Festas do 2º andar da Reitoria da UFRGS (Paulo Gama, 110). Confira a programação abaixo. As inscrições já estão esgotadas.
9h: Abertura com organizadores da UFRGS e da Appoa
9h30min: debate “Raízes do Brasil: um livro em processo de construção”, com Lilia Schwarcz (USP) e Pedro Meira Monteiro (Princeton)
11h30min: debate "A pesquisa dos originais", com Mauricio Acuña (USP/Princeton) e Marcelo Diego (Princeton)
13h: intervalo para almoço
14h: sessão de autógrafos de Raízes de Brasil: edição crítica, com Lilia Schwarcz (USP) e Pedro Meira Monteiro (Princeton)
15h: debate "Perspectivas – posfácio", com Lilia Schwarcz, Pedro Meira Monteiro, Enéas de Souza (Appoa), Luís Augusto Fischer (UFRGS), Robson Pereira (Appoa) e Lucia Serrano Pereira (Appoa)
17h: debate "Os efeitos na cultura, interpretações e leituras", com Enéas de Souza (Appoa), Luís Augusto Fischer (UFRGS) e Robson Pereira (Appoa)