Quando a lenda se torna fato, imprime-se a lenda. A sentença está em O homem que matou o facínora (1962), faroeste clássico de John Ford, mas bem poderia referir-se a A odisseia – Memórias e devaneios de Jupiter Apple.
Com previsão de lançamento para o dia 20, o livro é resultado de conversas que o músico Juli Manzi manteve com Jupiter Apple, ou Maçã, alter ego de Flávio Basso, entre julho de 2014 e agosto de 2015. Quatro meses depois, em 21 de dezembro, o menino que queria tocar como o beatle George morreria vítima de falência múltipla dos órgãos.
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Em pouco mais de 150 páginas de narração em primeira pessoa, Jupiter vai da maternidade às clínicas de reabilitação, divaga sobre suas bandas (as seminais TNT e Cascavelletes) e projetos individuais, se autoelogia horrores e filosofa sobre a vida e a morte. Tudo pincelado por fartas doses de sexo – em uma quantidade e diversidade que fariam a lenda do pornô Rocco Siffredi desejar nunca ter pisado em um set.
Claro que, como em um legítimo bate-papo com Júpiter, o fluxo de informação é constante, caótico, repleto de digressões e personagens e carente de cronologia – coisa que o próprio Jupiter admite lá pelas tantas:
– O Juli (Manzi) é fantástico, ele organiza o que eu digo, porque eu falo tudo fora de ordem, o que é um grande problema, mas ele transforma em soluções. Sou excêntrico, assumo, e não tem nada de errado, tá tudo certo, por sinal, graças a isso o público gosta de mim.
Em suas histórias, como também era usual, Jupiter não distingue ficção de realidade. Em alguns momentos, a fantasia chega a ser tocante (Mick Jagger e Keith Richards o teriam visitado quando bebê), em outros revela-se mais sombria (aos 13 anos, ganhou um abraço do demônio sob a escrivaninha do quarto). De uma forma ou de outra, o objetivo é o de aumentar o mito e dar um brilho extra a situações prosaicas, como uma simples caminhada pela praia.
A odisseia, portanto, acaba sendo mais uma homenagem ao personagem que foi Jupiter Apple do que um documento com tratamento jornalístico, uma biografia de fato. É uma leitura rápida, que revela um pouco do intrigante universo interno de Jupiter – universo que se torna um tanto agridoce nos trechos finais, quando os problemas com o álcool estavam avançados e o músico descobriu uma nova espiritualidade, incluindo aí tentativas de se tornar judeu e ir para Jerusalém rezar no Muro das Lamentações.
Ao final, o livro deve divertir e até arrancar algumas lágrimas de saudade de quem teve a oportunidade de conviver com a figura, mas pode ser desafiador para quem busca alguma lógica – afinal, estamos falando de Jupiter, o Apple, o Maçã. Uma lenda que vai ser sempre maior do que o fato.
A ODISSEIA – MEMÓRIAS E DEVANEIOS DE JUPITER APPLE
De Jupiter Apple com Juli Manzi
Memória, Azougue Editorial, 154 páginas, R$ 44.
TRECHO – JUPITER E O DISCO VOADOR
"Eu tava bem distraído, com uma água mineral com gás na mão, pensando na vida, nas novas canções, no single e no filme que tava fazendo, quando me dei conta de que o barquinho não era um barquinho, era um óvni. Ele começou a subir e eu tive a minha primeira sensação de abdução da vida. Passou por cima da minha cabeça e mandou alguma coisa, que não sei bem o que era, mas comecei a ficar muito tonto. Fiquei desesperado, porque sou muito cagão, como Pat Garret and Billy the Kid, mas também sou tataraneto do bravo cavaleiro romano Cecílio Basso, governador da Síria. De todo modo, saí correndo pela praia pra não ser abduzido. Eu sabia que, se entrasse naquela nave, não sairia mais, e não sou como Raul Seixas, que queria entrar numa espaçonave. Tinha quilômetros de praia pela frente até chegar na casa barroca, e eu tive que agregar todas as minhas forças pra tentar voltar. Me abriguei num crepe 24h e comprei mais duas ou três águas minerais com gás. Eram umas três ou quatro da madrugada, e o pessoal do crepe foi muito simpático, mas não falei nada com eles sobre o óvni. Tomei horrores d’água e fiquei olhando pro céu, quando percebi que a barra tinha limpado, voltei pra casa barroca. Essa casa era duma amiga, uma black girl que transava comigo e com meu editor. Foram bons momentos, mas havia alguma turbulência. Cheguei em casa, me tranquei e era isso."
Preste atenção
Outro livro a respeito de Jupiter Apple está em vias de se tornar realidade. Essência interior – A efervescente vida & obra de Flavio Basso, dos jornalistas Cristiano Bastos e Pedro Brandt, deve ser lançado ainda este ano pela Artes & Ofícios Editora. A ideia é celebrar o legado de Jupiter, investindo em pormenores da criação e alguns de seus trabalhos emblemáticos, como A sétima efervescência (1996), Plastic soda (1999) e Uma tarde na fruteira (2008).