Se há algo que se pode dizer sobre a carreira de David Bowie é que ela nunca foi óbvia. Chamado de camaleão, o cantor e compositor britânico transitou por gêneros e lançou tendências, mas sempre em um caminho labiríntico.
Não seria diferente em Lazarus, musical idealizado por ele que estreou no circuito off-Broadway em dezembro de 2015, um mês antes de sua morte. Há, como se poderia imaginar, uma sensação de finitude que envolve a peça. Mas não só. A primeira montagem brasileira do espetáculo estreou em São Paulo nesta quinta-feira (22).
— Bowie transformou questões pessoais em ideias bastante amplas, gostava de trabalhar cripticamente. Então existe uma navegação sensorial, emocional, e não uma obviedade temática — disse Felipe Hirsch, diretor do musical no Brasil.
Lazarus é uma continuação de O Homem que Caiu na Terra, livro do americano Walter Tevis que deu origem ao filme homônimo, de 1976, com Bowie no papel principal. A trama acompanha Thomas Jerome Newton, um alienígena que vem à Terra para tentar salvar os habitantes de seu planeta, onde quase não há mais recursos naturais. Aqui, ele vira um rico empresário de patentes tecnológicas e descobre a solidão e o alcoolismo.
O musical se passa quatro décadas mais tarde. Newton não envelheceu nada e parece preso no tempo, sobrevivendo com doses de gim. Ele está numa eterna e frustrada busca por retornar ao seu planeta e navega entre figuras realistas e outras fantasmagóricas, como se alternasse entre realidade e delírio.
— A história é um pouco sobre alcoolismo, sobre perder os limites e o pouco tempo que se tem na vida. E, ao mesmo tempo, querer voltar para um porto — comenta Hirsch.
Bowie se referia ao próprio vício, uma fase nos anos 1970 quando usava cocaína — não à toa, incluiu na trilha da peça Always Crashing in the Same Car, sobre um incidente em que o cantor decidiu retaliar um traficante na rua. Também explora vários sentidos do nome do espetáculo. De cara, ele evoca o personagem bíblico Lázaro, aquele que foi ressuscitado por Jesus. Mas Bowie tem outra fonte, a poeta Emma Lazarus. A autora do soneto estampado na base da Estátua da Liberdade ainda inspira um personagem da peça.
E a morte está, sim, presente. A criação do espetáculo coincidiu com a descoberta do câncer que levaria à morte de Bowie, em janeiro de 2016, aos 69 anos. Lazarus e seu último disco, Blackstar, vieram imbuídos da ideia de finitude e ficaram conhecidos como um epitáfio do compositor.
— Bowie questiona o medo em sua plenitude, que é a negação da morte. Aqui ele invoca algum humor para questionar a morte, cria letras irônicas, mistura arranjos dark com deboche — comenta o ator Jesuíta Barbosa, que descoloriu os cabelos para interpretar o protagonista da versão brasileira do musical.
Lazarus é costurado por 20 canções de Bowie, todas cantadas em inglês, por questões contratuais. Há sucessos antigos, como Heroes e Life on Mars?, mas a maioria vem dos últimos álbuns, The Next Day e Black Star, criados quando o artista já ensejava a produção de um espetáculo.
Sobre o palco, há uma plataforma móvel, que cria inclinações diferentes e desestabiliza o andar do elenco. Espelhos ao fundo e projeções geométricas ajudam a criar o visual distorcido e fazendo jus ao universo labiríntico de Bowie.
Espetáculo inaugura teatro
A estreia de Lazarus marca a abertura do Teatro Unimed, na esquina da rua Augusta com a Alameda Santos, na região paulistana dos Jardins. A casa fica no primeiro andar de um prédio desenhado pelo arquiteto Isay Weinfeld. Quem chega ao local encontra a bilheteria já no térreo, ao lado do café Perseu.
O teatro tem um palco de 100 metros quadrados com uma boca de cena (a parte da frente do tablado) bastante ampla, além de um fosso para músicos. São 249 lugares, divididos entre uma plateia inferior e um balcão.