Por Valmir Santos*
Antunes Filho sai de cena quando os campos da arte e da cultura são atacados pelo grupo político de turno, em plena instância federal, com grau de violência que sua geração jamais imaginou — ela que forjou a modernidade no teatro brasileiro em diálogo com encenadores europeus aportados por aqui após a Segunda Guerra Mundial.
Ele coordenava o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) desde 1982, no sétimo andar do Sesc Consolação, na região central de São Paulo, edifício que abriga no subsolo o Teatro Sesc Anchieta.
Havia 37 anos, portanto, o diretor de 89 anos tinha seu trabalho intelectual e artístico contratado pelo Serviço Social do Comércio, o Sesc-SP. Uma condição singular, digna de mundo desenvolvido, reconheça-se, dada a irrelevância do Ministério da Cultura na periclitante tradição do país nesta seara — pasta ora extinta.
Antunes fez da pesquisa fomentada o laboratório de invenção e formação de ator para as artes da cena, com veredas para a cenografia e a dramaturgia. O CPT era uma extensão do Grupo de Teatro Macunaíma, nascido Grupo Pau Brasil como desdobramento de um curso para jovens que ministrou em 1977, sob recursos públicos, e resultou na antológica montagem do ano seguinte, Macunaíma, inspirada na rapsódia de Mário de Andrade acerca das lendas e mitos indígenas e folclóricos.
O espetáculo que revelou o ator paraense Cacá Carvalho no papel-título representou a inflexão na carreira do encenador dedicado ao ofício desde a década de 1950: rompeu com projetos limitados a entreter sem o mínimo esforço de alçar outros patamares de invenção em sua linguagem.
Em suma, Antunes circunscreveu o paradigma contemporâneo do teatro de pesquisa que hoje vige com relativa vitalidade nas artes cênicas praticadas, pensadas e fruídas em boa parte das capitais e interiores, guardadas as proporções nos modos de produzir.
Sem que constituísse propriamente um grupo como os muitos que derivaram de sua experiência — e apesar de assim nomeado, pois a rotatividade dos iniciantes e veteranos foi uma constante no CPT-Grupo Macunaíma, com raras exceções —, Antunes Filho parece ter feito de sua solidão povoada (para fazer uma ponte com o processo de individuação do fundador da psicologia analítica, o suíço Carl Gustav Jung, que tanto admirava e incorporou no treinamento/autoconhecimento de quem pisava o seu linóleo) a condição paradigmática para o trabalho vertical de coletivos artísticos que irrompeu de maneira mais evidente e organizada a partir da década de 1990.
O público acostumou-se a ir ao teatro para dar-se ao trabalho do espectador intelectualmente ativo, independente de seu repertório de vida, digno de inquietar-se com as proposições poéticas dos criadores. Antunes Filho é um dos responsáveis por essa noção cidadã da arte que o Brasil mal principiou em seus cinco séculos e pouco, e já se vê ameaçado de perdê-la de vez.
* Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena