Ingressos esgotados poucos dias depois do início da divulgação oficial. É com essa expectativa que o público porto-alegrense receberá a comédia dramática O Topo da Montanha, em que Lázaro Ramos e Taís Araújo – casal fora dos palcos que está na TV em Mister Brau – vivem, respectivamente, Martin Luther King (1929 – 1968) e a camareira Camae, que confronta o ideal pacifista do importante líder pouco antes da morte dele. Quem imagina o encontro é a dramaturga americana Katori Hall, autora da peça de 2009 dirigida, aqui, pelo próprio Lázaro. As sessões serão nesta sexta (2/6) e sábado (3/6), às 21h, e domingo (4/6), às 18h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº).
Leia, abaixo, a entrevista que o ator e diretor Lázaro Ramos concedeu a Zero Hora por telefone. A entrevista com a atriz Taís Araújo pode ser lida aqui.
ENTREVISTA: Lázaro Ramos
Que Luther King você interpreta no espetáculo? É um personagem que humaniza o mito?
É um Luther King que tenta aproximar o mito de todos nós. Quando falamos de uma pessoa que realizou um ato transformador de tamanha grandeza, parece que que é algo distante. Alguns acreditam que os grandes atos são os que transformam o mundo, mas às vezes as pequenas ações diárias têm um poder muito grande. É isso que você mencionou na pergunta sobre a humanização. Quando você mostra esse cara que fez tantas coisas importantes e, ao mesmo tempo, está cheio de defeitos e dúvidas, isso estimula quem assiste ao espetáculo. A busca foi sempre essa. Em um primeiro momento, eu pensava em imitar o Luther King. Comecei a estudar os documentários sobre ele, ver os vídeos na internet, observando seu jeito de falar, olhar, caminhar. Mas, em todas as vezes que eu ia ensaiar, percebia que isso só o afastava das pessoas. Então, optei por fazer o meu Luther King, que na verdade é o de todo mundo, de toda a plateia.
Em que medida as ideias de Luther King servem de reflexão atualmente?
Muitos dos textos que dizemos (em cena) parecem ter sido escritos ontem ou hoje. São textos sobre a necessidade da coragem, a importância do afeto. São palavras que necessitamos ouvir hoje. É muito importante tentar estabelecer um diálogo, falar sobre direitos, saber da importância do afeto apesar de tanta luta que tem que haver. Não sei se isso é bom ou triste. Ao mesmo tempo em que a peça se torna muito atual, também nos lembra de que caminhamos a passos de formiga no que diz respeito à luta por igualdade.
Como foi conjugar o trabalho de ator e diretor?
Primeiramente, eu não queria dirigir. Sempre falei que não gostaria de acumular as duas funções. Mas a gente demorou para conseguir montar a peça: da compra dos direitos até a estreia, passaram-se dois anos. Nesse período, as ideias que me vinham à cabeça eram naturalmente de diretor, então já tinha um caminho andado. No começo do espetáculo, permiti que o diretor falasse mais alto. Então, trabalhava mais a concepção, as marcações, os estímulos para a Taís (Araújo) e para mim também. E me entreguei realmente como ator apenas um mês antes da estreia. Fiquei muito inseguro, porque como ator eu estava praticamente começando. Depois de ter levantado toda a estrutura da peça, me permiti escutar os grandes companheiros que eu tinha. Então, escutei muito o Fernando Philbert (codiretor), e a equipe do projeto acabou me ajudando como ator.
O espetáculo está encerrando sua trajetória em Porto Alegre?
A princípio. Queremos voltar no ano que vem, mas neste ano encerramos em Porto Alegre.
De que maneiras o espetáculo dialoga com o público?
É um espetáculo que consegue acolher todas as plateias por méritos do texto e da maneira que escolhemos para montar. Uma pessoas branca que não pensa sobre esses assuntos se sente acolhida naquele ambiente, às vezes incomodada por algumas reflexões levantadas ali, mas ao mesmo tempo sai estimulada a participar dessa luta. Acho que isso ocorre muito por causa do humor do espetáculo. O humor tem esse poder de aproximação. Ao mesmo tempo, a plateia negra que tem visto o espetáculo ao longo desses quase dois anos se sente representada, sente que o discurso que está sendo dito ali faz parte de sua vivência, de suas dores e alegrias. É um privilégio poder estar em cena com esse texto.
O segredo da parceria com a Taís são as semelhanças entre vocês ou as diferenças?
É a descoberta de que conseguimos ser uma coisa só mantendo as individualidades. Na verdade, somos muito diferentes, inclusive artisticamente, o que é uma coisa boa. Mas é uma diferença que estimula a relação. E tem uma coisa que nos une profissionalmente, que é a escolha dos projetos. Estamos no Mister Brau e em O Topo da Montanha. São projetos que nos alimentam muito. Artisticamente, tem um valor grande nos personagens que fazemos, e somos muito felizes porque são novas narrativas que encontramos.
Que Brasil você gostaria de deixar para seus filhos? E que Brasil você acha que eles herdarão na verdade?
Vou acabar caindo em clichês, mas queria que fosse um Brasil do jeito que tentamos criá-los (os filhos): respeitoso, que acolhe suas diferenças, honesto, um Brasil onde a empatia seja exercitada, onde a equidade aconteça de verdade. Mas, ao mesmo tempo, que mantenha sua alegria. Não tenho visto nada disso atualmente. Agora, o Brasil que eles vão encontrar (risos)? Não sei, é uma grande surpresa. Acho que o roteirista que está escrevendo a história do país é tão surpreendente que eu não seria capaz de fazer qualquer exercício imaginativo. Cada dia tomamos uma surpresa.
Em 19 de junho, você lançará o livro de memórias e reflexões Na Minha Pele (Objetiva, 152 página, R$ 34,90 impresso e R$ 23,90 e-book). Foi necessária uma experiência de vida para escrevê-lo?
Não vivi o suficiente. Esse livro pôde sair depois de 10 anos de contato com esse material primeiramente porque encontrei uma voz. Quando comecei a escrever, estava fazendo de uma maneira muito técnica, falando por meio de dados e números. Mas descobri que minha voz não é essa. É uma voz mais conversada, mais imprecisa, e foi isso que encontrei no último ano, quando finalizei mesmo o livro: me permitir ser impreciso. Esses assuntos são tão escamoteados, que quando vamos falar sobre eles há uma necessidade de recorrer a alguns dados e a algum pensamento científico no sentido de uma técnica didática na escrita. A minha técnica de escrita é a técnica da conversa, do hipertexto e da aproximação. Esse encontro foi libertador. Dentro disso, também descobri uma voz que não é de um ser humano completo: é um ser humano em formação, em caminho. Esse é um livro de um princípio ou meio de caminhada. Não é um livro definitivo, mas é um livro que propõe uma conversa.
Que questões lhe motivaram a escrever?
Gosto muito de falar as coisas que penso, principalmente sobre a demanda social e o preconceito. Ao longo desse tempo que tenho me exercitado como criador por meio de meu programa de entrevistas no Canal Brasil (Espelho), por meio das peças de teatro que escrevi, por meio dos livros infantis que escrevi, das obras de audiovisual que tive a oportunidade de escrever e participar, encontrei essa voz ou pelo menos um caminho para acessar as pessoas. Esse livro é um pouco o resultado dessa descoberta.
O programa Espelho, no Canal Brasil, está em sua 12ª temporada. O que você mais aprendeu como entrevistador?
Espelho é minha grande universidade de exercício de linguagem. Exercito muito a escuta, mas ao mesmo tempo exercito a pesquisa, quando vou pesquisar sobre os entrevistados. Eu me coloco muito no lugar do público quando vou fazer as perguntas. Às vezes não faço perguntas muito elaboradas porque fico pensando sobre quem está em casa. E faço uma pergunta simples, que conecte o entrevistado com o público. É quase como ser um estimulador de conversa. A conversa não é apenas entre o entrevistado e eu, é com quem está assistindo também. Sou um espectador ali.
Há quem pense que o politicamente correto deixou o mundo "chato". Qual a sua opinião sobre o assunto?
Não me sinto no direito de ser fiscal do desejo de ninguém. E falo isso em todos os sentidos. O politicamente correto vem também de um desejo. Se uma mulher me diz que não quer que eu faça determinada piada sobre ela ou o universo feminino, eu não tenho o direito de fazer essa piada. Tenho que escutá-la e iniciar um diálogo, criar parâmetros de convivência. Vivemos em um país e em um tempo nos quais uma única voz costumava ser escutada e era o padrão determinante nas relações. Isso não existe mais. Temos que nos escutar, escutar nossa diversidade e iniciar esse diálogo. Se é certo ou não, e qual o limite, não sei determinar. Mas estou disposto a conversar sobre isso. Tenho que conversar com as mulheres e entender qual o parâmetro de nossa convivência. Os brancos têm que conversar com os negros e entender nosso parâmetro de convivência. No meio da minha roda de amigos gays, tenho que conversar, sim, e criar parâmetros de convivência. Isso é democracia, e isso é saudável. Cria novas narrativas, porque o mundo não pode ser dominado apenas por um tipo de pessoa. O mundo é de todos nós, e temos que ter a capacidade de conversar sobre isso. Não me sinto no direito de julgar e chamar de chato. Me sinto mais no direito de dizer: "Estou junto nessa conversa". Quando respondo a você, cito minha relação enquanto homem com as mulheres, a minha relação enquanto hétero com os gays e também falo da minha relação enquanto negro com os brancos com os quais convivo. Não é um movimento de via única. É o caminho do diálogo. É circular, como a cultura africana, que tem a roda de capoeira, que tem a roda dos griots (contadores de história que transmitem a tradição) que estão dando ensinamentos. A cultura africana tem muito a nos dizer. Uma vez, o Muniz Sodré (pesquisador da comunicação e da cultura) me disse uma coisa linda: que ele acha essa cultura circular uma relação muito justa, porque todo mundo tem a oportunidade de ver o outro. Quando uma roda gira, você experimenta o lugar do outro, está todo mundo se vendo. Acho esta uma imagem muito bonita para falar sobre empatia.
A luta de Martin Luther King abriu caminho para o primeiro presidente negro nos EUA. Como você avalia o legado deixado por Barack Obama?
Simbolicamente, foi importantíssimo, e agrego a esse valor simbólico a relação dele com a esposa, a família que formaram, que era uma inspiração. Publicamente, a maneira como ele falava, algumas relações que ele iniciou de diálogo com outras nações foram muito interessantes. Política e economicamente, ele estava defendendo os valores do povo americano. Mas acho que foi uma mensagem para um monte de gente que vai dizer: "Esse posto eu também posso alcançar". E isso é de um valor inestimável.
O TOPO DA MONTANHA
Nesta sexta (2/6) e sábado (3/6), às 21h, e domingo (4/6), às 18h.
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), em Porto Alegre.
Ingressos esgotados.