Quando Cate Blanchett e Richard Roxburgh se apaixonam, raramente a coisa termina bem: dinastias inteiras entram em colapso; vidas são reduzidas a pó; é caso até de assassinato. Ou suicídio. Às vezes, ambos.
Mas os dois atores australianos, que contracenam há mais de vinte anos, pareciam mais do que saudáveis durante o brunch que tomamos juntos, no meio da semana, há pouco tempo. No intervalo dos ensaios de O presente, adaptação de uma das primeiras peças de Anton Tchekhov no Barrymore Theater, em Nova York, acomodados em uma cabine de canto do Russian Samovar, eles ouviam o garçom descrever as vodcas com infusão.
– Vocês não podem sair daqui sem provar pelo menos algumas – ameaçou o rapaz.
– Não tem outro jeito – concluiu Roxburgh.
– Temos que experimentar – concordou Cate.
– Em respeito a Tchekhov – completou ele.
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Meio altos ou sóbrios, eles sentem um respeito inevitável pelo dramaturgo, graças à história comum em suas peças: interpretaram Nina e Trigorin em A gaivota, em 1997 (filho morto, vida arruinada) e voltaram ao palco, juntos, como Yelena e Vanya para Tio Vânia, em 2010 (tentativa de assassinato e de suicídio).
Agora se reuniram novamente em O presente, uma comédia agitada e, às vezes, comovente, dirigida por John Crowley (Brooklyn, The pillowman). Quando estreou em Sydney, o Daily Telegraph a classificou como "brilhante e intensa".
Adaptada por Andrew Upton, marido de Cate, é uma versão ousada e cômica da primeira peça integral de Tchekhov, nunca encenada enquanto o autor esteve vivo, descoberta em um cofre, em 1920, 16 anos após sua morte. No formato original, o manuscrito é um melodrama bagunçado de 300 páginas, sem título e fragmentado, quase sempre chamado Platonov.
Upton transportou a ação para a Rússia dos anos 1990.
– Deixa de fora o comunismo, passa pela perestroika e a glasnost e acompanha a ascensão dos oligarcas – é uma grande oportunidade perdida, para o mundo, mas principalmente os russos – diz ele, por telefone.
Ele também envelheceu os personagens, colocando-os na meia-idade, quando estão mais conscientes das oportunidades que perderam. Em tempos de tamanha incerteza política e pessoal, ajuda muito se ver cercado de velhos amigos. Sem dúvida, Cate, 47 anos, e Roxburgh, 54, ficaram satisfeitos com a chance de se amarem, ferirem e azucrinarem. Mais de vinte anos contracenando um ao lado do outro fez nascer entre eles uma intimidade radical, uma paixão que se reflete entre os personagens, embora, como aqui, os casos de amor que retratam nunca dão certo e geralmente nem florescem.
Roxburgh interpreta Mikhail Platonov, ex-idealista se acabando na vodca e com mulheres; Cate é Anna Petrovna, uma viúva que não sabe o que será do futuro e que, por algum motivo, o adora.
–Aqui estamos nós, como nos velhos tempos, brigando por coisas que não podemos mudar e provavelmente nem o faríamos se pudéssemos – diz Anna a Mikhail.
Fora do palco, Cate e Richard não brigam, mas têm lá suas diferenças bem-humoradas – sobre a questão da cerveja ser bebível (ele: sim; ela: não), sobre o fato de Roxburgh ainda ser bonito (ele: não; ela: sim); sobre a possibilidade de Cate interpretar o Rei Lear (ele: sim; ela: não). Não conseguiram nem entrar em acordo sobre as doses de vodca com infusão de frutinhas de espinheiro, de um amarelo deslumbrante, oferta especial da semana.
– Ah, aí sim. Essa é boa para tomar de manhã – sentencia Roxburgh, aprovador. Ela reclama que tem gosto de remédio, mas vira o copo. – Fico bêbada com uma dose só.
Todo mundo bebe muito mais em O presente, peça em que a vodca flui como se fosse água – e com ela, um tipo de melancolia, o olhar para o passado, as escolhas inconsequentes e as perspectivas fracassadas.
Nenhum dos dois teve qualquer problema em retornar a Tchekhov, primeiro na Sydney Theater Co. e agora, novamente, na Broadway até 19 de março. Falam, animados, sobre a riqueza de seus personagens e demonstram uma compaixão criativa por suas loucuras e insanidades.
– São tão fugidios quanto nós, gente de verdade. Cheios de segredos e de ilusões sobre si mesmos – comenta ela.
Ele concorda, mas acrescenta:
– É, mas já vi peças de Tchekhov que me deixaram com vontade de arrancar os olhos!.
Ambos estavam empolgados com a nova versão do trabalho do escritor e Cate comentou seu aspecto de atemporalidade:
– Os personagens habitam um mundo político no qual são enganados e sabem disso – e aqueles que mentem sabem que eles sabem, mas todos fingem que a verdade está sendo dita.
Ambos gostaram da rusticidade da obra.
– Quando a li, fiquei de queixo caído com o lance anárquico da coisa toda – revela Roxburgh.
Cate acrescenta:
– Upton não manteve a bagunça formal do original, mas a emocional.
E se fosse para fazer bagunça, queriam então que fosse um com o outro, interpretando, como explicou Roxburgh, "duas pessoas incrivelmente parecidas, que se conhecem a fundo, mas não sabem o que fazer com isso".
Esse senso de cumplicidade se aplica aos atores também, como muitos dos colegas revelam.
– Os dois se prepararam para parecer dois idiotas. São muito espirituosos e já se puseram a postos. E não têm medo de cometer erros – confirma Upton.
Crowley, o diretor, completa:
– O que sempre me surpreende é a praticidade deles. Ficar sentado ali, discutindo cena e o significado desse ou daquele momento? Não, isso não os interessa. São de pôr a mão na massa.
E descreve também as diferenças entre ambos.
– Roxburgh funciona como a âncora de Cate, a firmeza que a permite se render ao instinto de fazer palhaçadas. E ela está ali para provocá-lo, deixar tudo mais interessante. Em certos momentos, quando estão em cena juntos, vejo um sorriso surgir no rosto dele de puro prazer.
Dá para perceber isso mesmo no meio de um ensaio técnico exaustivo. Repassando a cena de uma festa, Roxburgh se sentou em uma ponta da mesa, observando Cate com prazer óbvio enquanto ela ria, matraqueava e praticava as várias formas em que pensava disparar a arma que tinha em mãos.
Horas depois, sentados no teatro, conversando com Crowley durante o intervalo, perguntei se já tinham se apaixonado um pelo outro, antes que os respectivos cônjuges e os contratos cinematográficos milionários os forçassem a tomar caminhos diferentes.
– Não, nunca – diz ele.
Crowley se diz feliz pelo fato de os dois nunca terem se envolvido emocionalmente na vida real:
– Não consigo imaginar vocês desatando o nó emocional dessa peça se houvesse uma bagagem verdadeira no meio; seria complicado demais.
Cate concorda. E volta os olhos para Roxburgh com todo o carinho, a confiança e o cuidado brincalhão que só duas décadas de parceria podem criar:
– Platonov diz para a Anna: "Você é eu". Bom, quando olho para você, penso: "Esse é o tipo de ator que quero ser.".
Roxburgh ficou abismado.
– Espero que ela tenha dito isso no bom sentido – arrisca Crowley.
Por fim, Roxburgh se recompõe:
– A sensação é a de que tive uma vida emocional inteira com você. Tantos altos, baixos, brigas e desejos ao longo dos anos. Como um casamento num universo paralelo.
Por Alexis Soloski