Disputa o papel. É escolhido. Recebe o roteiro. Ensaia por semanas. Vai para o set. Prepara-se para entrar em cena. "Ação!". Grava. "Corta!". Refaz. Ficou bom. Está feito. Pronto para o próximo projeto. Este poderia ser um recorte da vida de um Wagner Moura, um Lázaro Ramos ou até mesmo um George Clooney. Poderia. Mas é a realidade de Billy. Isso, só Billy. Sem sobrenome. Trata-se de um fox paulistinha de cinco anos que, tal qual os nomes citados, é ator. Só não é humano.
O cachorrinho, que é uma espoleta no dia a dia, adora roubar petiscos, correr de um lado para o outro e brincar, principalmente com seu parceiro Napoleão — também um cachorro, não o imperador francês. Mas isso não tira o seu profissionalismo. Quando este especialista em fazer contas matemáticas básicas e responder com latidos entra no set, pode-se esperar uma grande atuação. Em seu maior projeto até agora, Aos Olhos de Ernesto (2020), da Casa de Cinema de Porto Alegre, Billy brilha, inclusive, em uma cena que exigiu muito de sua capacidade dramática.
Em determinado momento do filme, ele pula em uma sacola carregada por Ernesto (Jorge Bolani), rasga-a, derruba o conteúdo no chão — uma lasanha, que seria o almoço do protagonista — e o devora. Não é uma cena fácil. Billy, porém, tirou de letra. Mas, claro, nos bastidores, foi preciso um treinamento intenso para fazer a cena perfeita acontecer, assim como ocorre com os grandes artistas.
Além do talento do canino, o momento só foi possível graças ao adestrador Jone Batista Cardoso, 57 anos, tutor de Billy. O humano está na função, ensinando animais, desde 1987, quando, como cabo, foi trabalhar como instrutor no canil da Polícia do Exército, ocupação perfeita para um "cachorreiro", como o próprio se classifica. A partir daí, nunca mais largou os bichinhos de mão.
Sobre a grande cena de Billy em Aos Olhos de Ernesto, Cardoso lembra que foi um treinamento complicado e que levou nada menos que um mês e meio de preparo para que o artista canino estivesse pronto para o desafio. O adestrador também aponta que todo cachorro pode aprender os comandos básicos, mas nem todo bichinho tem aptidão para ser um show dog, como é o caso do seu fox paulistinha.
— É muito importante ter o roteiro meses antes para saber o que o cachorro vai ter que fazer, compatibilizando o temperamento e a potencialidade dele para executar aquela ação. Um cachorro que não busca a bolinha, como o próprio Billy, não tem como usar em uma cena em que ele tem que buscar algo com a boca. Cada cachorro tem a sua habilidade. E cada truque novo leva entre 10 e 15 dias — explica Cardoso.
Legado
Billy leva adiante o legado de seu antecessor, Buzz, que, segundo o adestrador, era da raça NDS — nem Deus sabe. O cachorrinho "virou estrelinha" em dezembro passado, aos 17 anos, mas deixou um legado digno de um astro. Em seu extenso currículo, tem participação em uma ópera de câmara que ocorreu no Theatro São Pedro, atuando no palco, além de diversos comerciais, filmes e séries de TV, sendo a principal delas Doce de Mãe (2014).
Na coprodução entre a TV Globo e a Casa de Cinema de Porto Alegre, o astro canino interpretou o personagem Pingo, que é roubado de Jesus (Daniel de Oliveira), que o encontra em uma outra casa, pula o muro e recupera o pet. Na sequência, o humano é preso e gera uma grande confusão, reunindo a família de Dona Picucha (Fernanda Montenegro) em torno do bichinho, no meio da rua. E, por lá, Buzz dá um show como Pingo, entregando vários truques. Então, sim, o saudoso doguinho atuou ao lado da maior atriz brasileira: Fernanda Montenegro. Não é para qualquer um.
— Para essa cena em Doce de Mãe, eu estava atrás do Daniel de Oliveira dando os comandos. E parecia que era o ator. O Daniel chegou e gravamos, não houve uma interação prévia. Precisava de uma semana para treinar, o que não ocorreu. Então, a gente usou essa trucagem, comigo fora do quadro. Eu nunca apareço no quadro, só os cachorros — brinca Cardoso, que tem cinco cães prontos para a ação.
Outro que está preparado para levar adiante o legado de Buzz é o já citado Napoleão. O vira-lata de três anos, que também tem Cardoso como tutor, já fez alguns comerciais, mas ainda não teve a grande chance de brilhar em um filme ou série. De acordo com o adestrador, ele está "cru", aguardando pelo roteiro certo e, assim, aprender novos truques. Enquanto isso, ele segue ajudando como pode, atuando com terapia assistida por animais, a pet terapia, em clínicas, hospitais e casas geriátricas — o seu público mais cativo são crianças com câncer. Já é uma estrela atrás das câmeras.
Para os fãs, é fácil encontrar estes astros caninos. Eles estão quase sempre com Cardoso em seu centro de treinamento, que fica na Estrada Cristiano Kraemer, 1.569, na Vila Nova, Zona Sul de Porto Alegre. Por lá, o humano também toca com a família uma creche para cães e um banho e tosa. Entre os clientes que levam seus pets para serem adestrados, alguns entram no "caderninho" do profissional cachorreiro como potenciais novas estrelas para quando alguma produtora procurar um bichinho específico. Ele faz a ponte e prepara o animalzinho para o papel — se o cachorro aceitar o cachê, claro.
A contratante
Billy e Buzz atuaram em produções da Casa de Cinema de Porto Alegre, e Ana Luiza Azevedo foi diretora de uma delas — Aos Olhos de Ernesto — e cocriadora de outra — Doce de Mãe. Ou seja, esteve envolvida diretamente com a citada dupla osso duro de roer. Segundo a cineasta, sempre que se tem um animal ator no set, a tensão aumenta, porque pode ser imprevisível, apesar de divertido.
— O cão tem a sua própria vontade. Quando a gente está escrevendo o roteiro, às vezes, a dramaturgia pede que exista ali um animal para compor a cena. Mas aí vem esse problema: "E agora? Eu preciso ter cães que façam o que a gente quer". No papel, é tudo maravilhoso, mas na prática é bem diferente (risos). Então, a gente vai atrás dos animais, como o Billy e o Buzz, e vai criando estratégias para fazer a cena funcionar — conta Ana Luiza.
Como se ter cães atuando já não fosse curioso o bastante, estas estrelas de quatro patas ainda protagonizam situações inesperadas. A cineasta lembra que, para Doce de Mãe, Buzz precisou ser maquiado, visto que o seu personagem tinha que ter uma mancha para ser reconhecido facilmente pelo seu dono. E como às vezes ficam instáveis, Ana Luiza explica que a assistente de direção já prevê os dias de pets em cena com menos material para gravar, antecipando as variáveis que podem ocorrer.
Ao ser questionada sobre como é a convivência com estes astros caninos no set, Ana Luiza diz, divertindo-se:
— O Billy foi bem estrelinha, meio temperamental. Fazia as coisas só quando ele queria (risos).
Por sua vez, Billy, a estrela de Aos Olhos de Ernesto, em sua defesa, restringiu-se a poucas palavras:
— Au au au!