Mãos com dedos de salsicha. Pedras com olhos. Chef que conta com a ajuda de um guaxinim dentro de seu chapéu. Multiverso, ficção científica, sequências de ação frenéticas e surrealistas. Citando assim fora de contexto, os elementos trazidos em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo o qualificam como um filme pouco convencional ao Oscar. Porém, o longa acumulou 11 indicações ao prêmio deste ano, sendo um dos principais favoritos para a cerimônia que será realizada neste domingo (12), no Teatro Dolby, em Los Angeles.
Aliás, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo tem se destacado nas premiações da temporada, que costumam servir de termômetro para o Oscar. Até aqui, o longa conquistou 335 troféus, como aponta o IMDb, o que inclui cerimônias realizadas por festivais paralelos, sindicatos e associações de críticos.
No último sábado (4), por exemplo, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo foi dominante no Independent Spirit Awards, considerado o "Oscar do cinema independente", vencendo em sete categorias — contando com a principal, melhor filme. Já no domingo (5), foi a vez da produção faturar o prêmio de roteiro original do Sindicato de Roteiristas da América (WGA).
Aliás, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo conquistou os principais prêmios de todos os sindicatos da indústria audiovisual americana, o que incluiu também as premiações das associações de diretores, produtores e atores. Vale lembrar que os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que realiza a cerimônia do Oscar, integram os mesmos sindicatos. Portanto, o longa é a principal aposta para a premiação deste domingo.
Dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, dupla também conhecida como “Daniels”, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo está disponível na Amazon Prime Video e também para locação em serviços como YouTube, Google Play Filmes e TV e Apple TV. Tendo sido lançada nos cinemas em março de 2022, a produção obteve bons números nas bilheterias (embora não tenha aquele apelo de um Avatar ou Top Gun): segundo o site The Numbers, arrecadou mais de US$ 107 milhões, sendo o primeiro filme da produtora e distribuidora A24 — de longas aclamados como Hereditário, Midsommar e Moonlight — a passar dos US$ 100 milhões.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo tem equilibrado popularidade de público e crítica, com uma história, no mínimo, singular. Na trama, acompanhamos a bagunça que vira a vida do casal de imigrantes chineses Evelyn (Michelle Yeoh) e Waymond (Ke Huy Quan) e a filha, Joy (Stephanie Hsu). Enquanto os pais são donos de uma lavanderia e lidam com problemas conjugais e financeiros — em especial, o imposto de renda —, a jovem passa por um período de maturação, assumindo sua identidade sexual e seus objetivos.
Contudo, Evelyn é confrontada por diferentes realidades paralelas, que representam os rumos que a vida dela teria caso tomasse determinadas atitudes ou decisões em certos momentos. Vale ressaltar que o filme traz ainda Jamie Lee Curtis interpretando Deirdre, uma funcionária pública que também desponta como vilã.
Fora do padrão
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo vem conquistando o público de forma poucas vezes vista nos últimos anos, conforme o doutor em história e crítico de cinema Waldemar Dalenogare Neto. Ele cita que produção proporcionou uma profunda ruptura que existe com o posicionamento lógico de um filme "com a cara do Oscar" e direcionado para a temporada de prêmios.
— Muitos acreditavam que o filme seria apenas abraçado nas premiações da crítica, mas que não teria amplo reconhecimento em prêmios como o Oscar por não fechar vários itens da checklist, como o direcionamento para o drama e também a data de lançamento, visto que é comum que as distribuidoras lancem seus filmes para o Oscar entre setembro e dezembro, gerando maior repercussão — aponta Dalenogare. — É um caso de um longa que consegue se sustentar ao longo de todo ano, manter a relevância e consolidar seu status de favorito, fato raríssimo.
A crítica de cinema Ieda Marcondes destaca que vários fatores contribuem para o sucesso de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo:
— Tem a grife da produtora A24, com fãs bastante fervorosos no Brasil; é um filme de artes marciais que mistura comédia e drama, então atrai tanto o espectador casual como o cinéfilo; tem forte representação asiática, com atores nascidos na Malásia, no Vietnã e descendentes de chineses, inclusive com atores que já foram bastante menosprezados pela indústria, e todo mundo gosta de um retorno triunfal, o chamado "comeback"; trata de aceitação dentro de uma família tradicional de imigrantes chineses.
Ieda sublinha que o Oscar não tem o costume de premiar comédias, muito menos filmes de artes marciais, então torcer por Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo seria como torcer por um azarão — um filme que ninguém imaginava que ia chegar onde chegou.
Monica Kanitz, crítica de cinema e curadora da Cinemateca Paulo Amorim, observa que o filme se enquadra no cenário de diversidade que a Academia de Hollywood vem buscando nos últimos anos — protagonistas de origem asiática, roteiro que traz conflitos enfrentados pela família de imigrantes que vive nos Estados Unidos, além de ser uma produção barata para a indústria do cinema (custou R$ 25 milhões).
— (O filme) vem ganhando todos os principais prêmios dos sindicatos que representam as diversas categorias do cinema, como atores, diretores e produtores. Só por isso já desponta como um dos favoritos ao Oscar, mas sempre podemos ter surpresas... Por exemplo: quem apostaria em Coda (No Ritmo do Coração) no ano passado? — avalia Monica.
Revolucionário?
Apesar do sucesso nas premiações e relativo apelo ao público, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo tem provocado debates acalorados nas redes sociais. Há quem o compare com as produções do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU), alegando que o filme da A24 trabalhe melhor com o conceito de multiverso. Há quem exclame que o longa seja revolucionário por conta desse caos narrativo — mistura de gêneros como fantasia, ficção científica, drama, artes marciais e animação. Mas também há os detratores, que o apontam como uma obra confusa.
Ieda ressalta que a aplicação do termo “revolucionário” ao filme pode ser complicada, pois a palavra pode significar tanto algo que nunca foi feito antes como algo que vai contra a maré. A crítica pondera que a trama geral lembra Matrix, no sentido em que uma pessoa se descobre como a escolhida para lutar contra um inimigo e acaba ganhando outra percepção da realidade — além da habilidade de lutar muito bem.
— No entanto, centralizar a narrativa numa família de imigrantes asiáticos e, sobretudo, numa mulher de 60 anos buscando uma espécie de reconciliação com a filha lésbica é, com certeza, revolucionário no sentido que vai contra uma maioria de histórias voltadas para um público composto por homens brancos e heterossexuais dos 20 aos 30 anos — completa.
Para Monica, o filme tem uma boa dose de ousadia criativa, já que “mistura recursos típicos das megaproduções de super-heróis aos dilemas de uma família comum”, além de inserir na trama elementos inusitados — como os dedos de salsichas, as caracterizações dos mangás ou as pedras com olhinhos. Ela também considera muito engenhosa a opção pelo multiverso para “a protagonista resolver seus problemas, com um dinamismo que lembra os jogos virtuais ou a troca de ambientes da internet”.
Mas, por outro lado, Monica acrescenta:
— Acredito que há um excesso de camadas, uma demasia de informações e situações improváveis que deixam o filme confuso e não tão atraente para os espectadores que vão ao cinema em busca de entretenimento, de algo leve e descomplicado. Acredito que os Daniels abriram um caminho; fizeram, sim, uma pequena revolução em combinar ficção científica, deboche, lutas marciais, criancices, dramas maternos e preconceitos. Com certeza se divertiram muito. Só resta saber se o grande público vai embarcar em outros filmes com um ritmo tão vertiginoso e sem um gênero definido.
Dalenogare crê que a definição de revolucionário para o filme soa exagerada. Por outro lado, não quer dizer que não exista pontos relevantes que merecem destaque.
— Recentemente, testemunhamos uma onda na TV e no cinema de lançamentos que acabam lidando com o conceito de multiverso, mas a forma como os Daniels desenvolvem isso neste filme é diferenciada pela mistura de gêneros, e não apenas com menções vagas buscando explorar um arco na narrativa — argumenta o crítico. — Entendo que muitas vezes pela ausência de uma palavra para conseguir definir a vibração com filme o termo “revolucionário” pode até se tornar um porto seguro para os fãs, mas isso descartaria elementos absurdos previamente explorados pela dupla de diretores em Um Cadáver Para Sobreviver (2016), que obviamente encontram espaço maior para desenvolvimento em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo pela dinâmica proposta.
Segundo Dalenogare, caso a produção dos Daniels confirme a vitória no Oscar de melhor filme, o legado será ainda mais impactante:
— Imagino que a indústria do cinema fará uma discussão maior sobre a citada "janela do Oscar", em que muitos estúdios até assumem prejuízos de bilheteria para tentar garantir uma visibilidade adicional no final do ano. Além disso, pontos centrais da narrativa sobre imigrantes e a visibilidade para nomes do elenco como Michelle Yeoh, Stephanie Hsu e Ke Huy Quan marcariam o vencedor de maneira muito mais efetiva, por exemplo, do que o longa que conquistou o prêmio de melhor filme no ano anterior, Coda.