Por Rafael Valles
Pesquisador e professor, doutor em Comunicação pela PUCRS
Como olhar para o dia 15 janeiro de 1985 em pleno fim de setembro de 2022? Como entender que, num mesmo dia, Cazuza e Tancredo Neves falariam a mesma língua, entre o refrão que clamava “pro dia nascer feliz” e o discurso que vinha “para promover mudanças corajosas e irreversíveis”? Já se passaram quase 40 anos desde que a primeira edição do Rock In Rio marcou história e desde que a abertura democrática do Brasil começou a ganhar forma com a eleição do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar.
Mas como olhar para aquele momento de transição na nossa história sem cair na nostalgia por um tempo distante ou na tristeza por encontrar um país hoje fraturado pelo ódio e pelos disparos de fake news? O filme Mudança, de Fabiano de Souza, que estreia nesta quinta-feira (29/9) na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, não tem a pretensão de alcançar uma resposta a tal pergunta. O mérito dessa obra, produzida pela porto-alegrense Rainer Cine, passa pelo desejo de refletir sobre como o ano de 1985 contribui para entendermos o momento que vivemos hoje.
O filme nos transporta para o dia 15 de janeiro daquele ano. Enquanto o congresso elege Tancredo Neves pelo voto indireto, Reinaldo (Gustavo Machado) e seu filho Caio (Guili Arenzon) voltam da praia para Porto Alegre, com a intenção de festejarem esse acontecimento. O filme procura mergulhar na intimidade de dois personagens que têm relações diferentes com o que está acontecendo. O sociólogo Reinaldo vê, naquele instante, a possibilidade de o país melhorar e de sua trajetória pessoal alcançar novos voos. Seu filho adolescente, porém, não sabe o que quer dizer a palavra “alienado” e está mais preocupado com as novas bandas que surgem no Brasil e no mundo. Enquanto isso, o país respira mudança – ou apenas sonha com ela.
– Tu já te deu conta que logo tu vai poder votar para presidente? – pergunta Reinaldo para o filho.
Em outra sequência do filme, Caio pergunta ao pai quanto tempo levará esse “comício”.
– Filho, o pai está esperando esse dia há mais de 20 anos – ele responde.
Mudança consegue transitar com fluidez entre o momento histórico que vivem os personagens e seus conflitos pessoais. Reinaldo percebe, no retorno à Capital, que seus anseios não se mostram assim tão simples de serem realizados, bem como que a oportunidade de trabalho e a transição democrática também teriam os seus percalços. Caio, por sua vez, acaba deparando com personagens e situações que cruzam seu caminho de forma inesperada e mostram uma realidade muito distante da sua. Em um único dia, pai e filho testemunham não só um período de mudança para o país, mas também um momento de mudanças para suas próprias vidas.
Fabiano afirma que “a proposta era tentar flagrar uma viagem em que expectativas diferentes sobre o mesmo tema convivem. Impasses, dúvidas, frustrações se misturam com fagulhas de empolgação. Cada personagem se afasta e se aproxima do outro, em histórias paralelas que também se cruzam”.
Autor de curtas como Cinco Naipes (2004), Um Estrangeiro em Porto Alegre (1999), tal como dos longas A Última Estrada da Praia (2010) e Nós Duas Descendo a Escada (2015), Fabiano traz em Mudança questões constantes na sua obra, como o contraste entre a cidade e a praia, a estrada, os personagens em constante deslocamento. Além disso, Mudança revela um olhar atento sobre a questão da memória: “Quando iniciamos a pesquisa, as pessoas diziam que se lembravam muito da tal Festa da Mudança, ocorrida no dia 15 de janeiro de 1985. Mas, quando íamos aprofundar a questão, chegávamos à conclusão de que elas lembravam do Diretas Já, realmente uma coisa que ficou mais no imaginário coletivo. Então, elas concluíam que não tinham maior recordação sobre esse dia que queríamos”, comenta Fabiano.
Com montagem e produção de Milton do Prado e direção de fotografia de Bruno Polidoro, Mudança é um filme harmônico nos enquadramentos e nos movimentos de câmara, assim como na escolha do ritmo dos cortes. O trabalho dos atores também ressalta um cuidadoso processo de composição dos personagens. O reconhecimento do filme veio através das premiações de melhor ator no festival Cine PE de 2020 para Guili Arenzon e melhor longa-metragem no Mexico Prague Iberoamerican Film Festival, em 2021.
Mudança é um filme que contribui para colocarmos em perspectiva a relação dos personagens frente ao seu momento histórico. Quis o destino que, nesse fim de semana de estreia do filme no cinema, tenhamos também o exercício cidadão de voltar a votar nas eleições. Estaremos mais próximos do que imaginamos daquele 15 de janeiro de 1985? “Estamos, meu bem, por um triz/ Pro dia nascer feliz”.
Mudança
De Fabiano de Souza. Com Guili Arenzon, Fernando Alves Pinto, Gustavo Machado e Rosanne Mulholland. Drama, 89min. Em cartaz na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre. A sessão da próxima terça-feira (4/10), às 19h30min, será seguida de debate com a equipe.