Quando Porto Alegre encontra Matrix. A trama de Contos do Amanhã, produção gaúcha que chega aos cinemas nacionais nesta quinta-feira (9), não se resume ao simples comparativo que abre este texto, mas é importante já situar o futuro espectador que o filme, que tem a Capital como o seu cenário principal, é influenciado por uma das mais relevantes obras de ficção científica da história do cinema.
Assim, o longa-metragem leva o espectador para o futuro, mas também para o passado. Em 2165, o sequestro de Michele Medeiros (Daiane Oliveira) coloca a cidade-estado Porto 01, o último reduto humano, em guerra. Este episódio, porém, está interligado com 1999 — justamente, quando saía o primeiro Matrix —, ano em que vive Jeferson (Bruno Barcelos), um adolescente que, na véspera do bug do milênio, recebe misteriosos áudios de um amanhã distante.
E é nessa mistura de internet discada com uma visão high-tech do próximo século que o diretor e roteirista Pedro de Lima Marques busca levar os espectadores pelo "despertar" de Jeferson que, de um adolescente comum, será o responsável por encontrar uma forma de salvar a humanidade. E a inspiração do cineasta, que estreia em longas-metragens, além dos animes Akira e Ghost in the Shell, assim como a já citada franquia estrelada por Keanu Reeves, também vem de uma série de histórias futuristas criadas pelo próprio no começo do século e publicadas em um blog.
Ou seja, Contos do Amanhã é a mistura da visão de futuro que Marques tinha com a realidade em que ele estava inserido quando começou a deixar a imaginação o levar para o amanhã. Porém, não foi fácil realizar o filme — ambicioso para o cenário de produções gaúchas, que não costumam investir em ficções científicas carregadas em efeitos visuais. Foram anos de tentativas e negativas em editais, até que, depois de muita insistência e melhorias, o projeto foi aprovado — e mesmo com um orçamento modesto, a reconstituição dos anos 1990 e a construção do futuro distópico de Porto Alegre que, na visão do cineasta, vai estar em boa parte já submersa, não deixam a desejar a produções com investimentos muito superiores.
— Contos do Amanhã tem a pretensão de apresentar um universo novo. A ideia não é que seja um filme fechado em si. Ele tem uma história, com início, meio e fim, mas ele abre um outro universo, um outro mundo. A ideia é mostrar que a gente pode, sim, criar novo mundos, futuros diferentes, e pode ser de uma forma nossa, mais latina. Durante muito tempo, parece que só o estrangeiro poderia falar sobre o futuro, como se a ficção científica fosse monopólio deles, como se a gente não pudesse falar sobre isso — explica o diretor e roteirista.
Em busca do futuro
A produção da Bactéria Filmes, da qual Marques é sócio, chega aos cinemas brasileiros depois de colecionar 27 seleções e 15 prêmios em festivais de cinema de gênero em 12 países — inclusive, passou pelo Boston Sci-fi Film Festival, nos Estados Unidos, um dos mais importantes eventos da categoria e onde George Lucas apresentou ao grande público, pela primeira vez, uma prévia de Star Wars: Uma Nova Esperança, em 1977.
Mas, até chegar lá, o trajeto foi longo. Após conquistar edital do Fumproarte, assim como outros aportes, o longa começou a ser filmado em 2014, tendo ainda gravações nos dois anos seguintes. A partir de 2016, começou a pós-produção, que se estendeu até 2019. O motivo? Para imaginar como Porto Alegre será daqui a mais de um século, eram necessários mais de 400 planos com efeitos visuais, que foram realizados por Pedro de Lima Marques, que fundou uma empresa especializada em pós-produção para dar conta do processo, a Forno FX.
Em contrapartida, a recriação de 1999 foi "limpa", com nada de efeitos especiais, mas um cuidado reforçado com o design de produção, preenchendo todos os detalhes para ser o mais fiel possível com a década, desde a música até a Pastelina que o protagonista come, assim como o computador que ele acessa, as roupas que veste e a escola que ele frequenta — que, por sinal, é a mesma do diretor, que estudou lá justamente na década em que parte de seu primeiro filme se passa, o Colégio Júlio de Castilhos, o famoso Julinho.
— Depois que eu fui escolhido, pensei em recuar pela primeira vez, porque ser protagonista de um filme de ficção científica gaúcho tinha tudo para dar errado, para acabar com a carreira que eu vinha construindo, mas, com o tempo, fomos vendo que o projeto era muito maior do que a gente imaginava. E, durante todo o processo, o clima foi de leveza e foi muito divertido. Me transformou como ator — relata o ator Bruno Barcelos, que vive Jeferson.
O protagonista da história ainda reforça que o set em que eram rodadas as cenas do passado era como "entrar em um portal para os anos 1990", no qual ele próprio — nascido em 1995 — fez descobertas arqueológicas, como o discman, a tática de rebobinar fitas k-7 com uma caneta e o que era o bug do milênio.
— Foi tudo muito novo e ir para os anos 1990 foi tão divertido quanto viajar para o futuro. Só espero que, em uma continuação, eu possa pilotar uma nave — diz o ator.
Coincidentemente, tanto Contos do Amanhã quanto Matrix Resurrections, o quarto longa da franquia hollywoodiana, estreiam neste mês de dezembro. E, na dúvida sobre qual filme escolher ir ver no cinema, a dica é: ambas apresentam efeitos visuais grandiosos para as suas respectivas realidades, mas apenas o título de Pedro de Lima Marques utiliza eles para imaginar como será a Porto Alegre do futuro...
— A motivação sempre foi olhar para Porto Alegre e pensar como essa cidade será daqui a cento e poucos anos. O que pode acontecer? E eu lembro que quando comentava com amigos, eles me diziam: "Mas por que Porto Alegre?". E eu respondia: "Mas por que não Porto Alegre?" — questiona o cineasta.