Por Edson Luiz André de Sousa
Psicanalista, autor, entre outros, de “Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia” (Artes & Ecos, 2022)
"Por que continuo a lutar? Porque estou vivo!"
Davi Kopenawa
Uma canção indígena, imagens de uma estrada à noite, a voz de Arnaldo Antunes lendo seu manifesto Isto Não É um Poema, escrito em homenagem a Moa do Catendê, assassinado no dia da votação do primeiro turno nas eleições no Brasil em 2018. É essa a porta de entrada do filme Um Poeta na Amazônia, de José Huerta, cineasta espanhol radicado em Paris. As palavras de Arnaldo Antunes dão o tom do que veremos no filme. Diante de um cenário de urgência, em que “o Brasil nega qualquer Brasil possível, cega qualquer futuro possível”, como reagir? O filme de Huerta parece ser uma resposta a essa cena inicial. Ele nos leva ao coração da Amazônia, nos apresentando o poeta César Felix, que criou um polo de resistência cultural em Rio Branco (AC).
Félix abriu um espaço de encontros em um café e o nomeou Café com Poesia. Assim, toda uma comunidade de pessoas que se sentem excluídas e ameaçadas por suas opções políticas e sexuais encontram ali um lugar de acolhimento, de escuta, de troca de ideias e de experiências. Huerta tem um olhar atento para o Brasil há anos e já fez outros documentários em nosso país, como Urubus (2007), Em Direção a uma Terra Sem Dor (2007), Uma Semana em Parajuru (2009), To Blo Dayi – Viagem às Origens Africanas da Capoeira (2015) e outros. Já filmou também na Bolívia, no Peru, na Colômbia, em Senegal, Benim e Madagascar.
Estamos diante de um filme que quer auscultar o coração da floresta e daqueles que resistem bravamente a sua destruição. Não lutam só pela sua sobrevivência, mas pela de todos nós, pois sabemos que a floresta amazônica significa vida para todo o planeta. As motosserras, os “dragões de ferro”, como nomeia o poeta, abrem feridas profundas e, se não nos acordarmos a tempo, perderemos tudo. O filme tenta registrar um pouco dessa dor no testemunho de muitas pessoas. Comovente o relato de Maria Zenaide, a parteira de origem indígena que acompanha o nascimento de muitas crianças enfrentando situações de precariedade. Uma figura musical, compositora, e que insiste em nos dizer que música traz saúde. Huerta esta atento à composição dessas cenas e a filma também à noite, com uma pequena vela nas mãos adentrando a mata, como um vagalume lutando pela vida. Em uma de suas músicas, ouvimos: “Os primeiros vagalumes são como as mulheres de força”.
Outro vagalume que ilumina o filme é Sebastião Pereira, o Tião. Entramos com ele na floresta, onde ele mostra algumas de suas riquezas. Ele raspa a casca da seringueira e mostra o seu efeito cicatrizante quando colocado em um ferimento. Diante de um Jatobá, abre um orifício e vemos jorrar um líquido de dentro da árvore que tem uma função medicinal para anemia. É anti-inflamatório e, segundo ele, é também o viagra da floresta. Nesta cena surge então a pergunta: por que motivo se iria derrubar uma árvore como essa?
Um dos fios condutores do filme é um verso de César Felix: “Se oponha com sonhos, não com lágrimas”. Portanto, ao mostrar alguns cenários de destruição, vemos imediatamente também a força dessas comunidades em tentar responder, como podem, a tantas violências.
O conhecimento da história é fundamental nesses movimentos, e o filme nos ajuda a construir uma narrativa da lógica de “ocupação” da Amazônia, sobretudo a partir da ditadura militar no Brasil, quando se pensava a floresta como um grande vazio. Sabemos bem a quem interessava ocupar esses “vazios” fazendo terra arrasada de tudo que viam pela frente: flora, fauna e comunidades indígenas e ribeirinhas. Esse cenário não mudou muito e só se agravou nos últimos anos em que as áreas de destruição aumentaram assustadoramente e o número de assassinatos e expulsão de indígenas de suas terras, também.
O filme termina com um chamado de esperança, quando Felix e Huerta visitam uma comunidade indígena dos Ashaninka, quase na fronteira com o Peru. São os povos dos pássaros, e, assim, certa imagem de liberdade é transmitida na forma como vivem. Em uma das cenas finais, vemos um indígena se pintando silenciosamente enquanto ouvimos o atual presidente dizendo: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”. Mas a beleza da cena é mais forte, e a fala desse indígena responde à ameaça. Ele diz em alto e bom tom: “Somos brasileiros, e é neste país que vamos lutar pela sobrevivência”. Vamos precisar de muitos poetas na Amazônia, e este filme não deixa de ser um chamado, pois a sobrevivência é para todos nós.
Um Poeta na Amazônia
De José Huerta. França/Espanha/Brasil, 82 minutos. Sessão de lançamento na próxima terça-feira (16/8), às 19h, no CineBancários (Rua General Câmara, 424, em Porto Alegre). Saiba mais em cinebancarios.blogspot.com.