Sentir saudade do que não se viveu está na moda. Inclusive, o filósofo polonês Zygmunt Bauman, morto em 2017, tentou explicar esse fenômeno como uma das consequências do fim do pensamento utópico. No lugar deste entrou a retrotopia, que é um regresso a um passado mitificado, mas que nunca existiu realmente. Dele as pessoas selecionam apenas algumas partes, em uma replicação mais imaginária do que real. Embalado com este sentimento moderno de "nasci na época errada", o cineasta Edgar Wright (de Em Ritmo de Fuga e Scott Pilgrim Contra o Mundo) lança Noite Passada em Soho, que estreia nesta quinta-feira (18) nos cinemas.
O filme acompanha a vida e os sonhos de Eloise (Thomasin Mckenzie), uma jovem apaixonada pelo mundo da moda desde criança que deixa a sua casa, em uma pequena cidade no interior da Inglaterra, para estudar em uma prestigiada universidade de Londres a fim de se tornar uma estilista. E ainda vale destacar que, além disso, ela carrega duas pequenas peculiaridades consigo, fundamentais para o desenrolar do filme: é obcecada pelos anos 1960 e, aparentemente, também é sensitiva ao sobrenatural, enxergando a sua mãe morta.
Ao se mudar para a região central da cidade onde também mora o Big Ben, que é onde a vida acontece, na visão da jovem, as suas expectativas, rapidamente, começam a dar espaço para frustrações. E, na ânsia de não decepcionar a sua avó (Rita Tushingham) ou a memória de sua progenitora, Eloise decide persistir e, para isso, deixa a república na qual tinha começado a viver e que era habitada por um cruel grupo de meninas para alugar um antigo apartamento no centro do cultural distrito de Soho que é administrado pela Sra. Collins (Diana Rigg, falecida em 2020).
E quando tudo parece estar entrando nos trilhos, a protagonista passa a ter vívidos sonhos com a misteriosa Sandie (Anya Taylor-Joy, sempre excelente), uma obstinada jovem que habitou a mesma casa e que, auxiliada pelo seu agente Jack (Matt Smith), pretendia chegar ao estrelato como cantora. Ah, e ela vivia nos "gloriosos" anos 1960. A partir daí, a trama passa a transitar entre o passado e o presente, colocando Eloise dentro dos eventos vividos pela misteriosa musa de outra época. A protagonista, então, começa a se inspirar naquelas viagens oníricas, tornando-se mais determinada e criativa, até que presencia momentos que mostram que o passado não era tão glamouroso assim, o que começa a prejudicar o seu estado emocional já abalado pela perda da mãe. E tudo piora quando a personagem de Thomasin testemunha um brutal assassinato.
Problemas do passado
Para contar a história de Eloise e, consequentemente, a de Sandie, Wright se reuniu com a roteirista Krysty Wilson-Cairns, indicada ao Oscar por 1917. Juntos, eles fizeram uma visita minuciosa ao passado, resgatando as músicas que embalavam a época, como eram os points mais badalados de Soho. Também beberam em diversas fontes que fizeram sucesso no passado e que foram inspiração para o saudosista cineasta, como o giallo — subgênero do suspense oriundo da literatura italiana, que acompanhava assassinos em série e influenciou, inclusive, os filmes de slasher — e as assustadoras tramas fantasmagóricas que se tornam mais escassas à medida que o chamado horror psicológico ganha mais espaço e, com isso, as assombrações vão ficando mais discretas.
A mistura de referências, todas clareadas por uma chuva de néon, são bem dosadas no começo do filme, que consegue desenvolver bem os dramas de Eloise, os seus medos, sua ambição e também a sua frustração com a cidade grande. Depois, as visitas da protagonista ao mundo de Sandie começam a render inspiração para a sua criatividade como estilista, mas esta viagem se torna aterrorizante cedo demais e, antes da metade da projeção, os sonhos começam a se aprofundar na podridão da época. Mas Wright, mesmo que tenha a intenção de apresentar a sensação de prisão que os pesadelos causam, exagera na fórmula, tornando a metade final de Noite Passada em Soho uma sucessão de repetições que ficam cansativas.
Além disso, as reviravoltas que fazem parte do filme podem ser vistas a quilômetros de distância, sem qualquer surpresa quando as revelações são feitas. Por sinal, quando duas acontecem para revelar identidades de personagens do passado, os diálogos são tão expositivos que parecem ter sido tirados de desfechos das histórias do Scooby-Doo — que é ótimo, mas para um público ligeiramente diferente. Assim, Edgar Wright, mais uma vez, capricha na trilha sonora, na estética e em planos interessantes para retratar os seus personagens — as cenas com os espelhos, refletindo Eloise e Sandi, são espetaculares —, mas falha no roteiro.
A mensagem final, por sinal, é confusa e nitidamente conflita com o que foi trabalhado durante as quase duas horas de filme, caindo em um velho e problemático clichê de Hollywood, que coloca a mulher como a maluca da história. Noite Passada em Soho, assim, desperdiça uma excelente ideia, que poderia estar embalada em um lindo papel de presente, mas o responsável se perde no tempo, tanto na divisão da minutagem para conseguir equilibrar a sua história quanto no que se refere à época em que seu filme está sendo lançado, apropriando-se de uma conclusão já datada. Mas não foi por falta de aviso. Ao longo da produção, diversos personagens alertam a protagonista: "Londres pode ser difícil". E, pelo visto, é mesmo.
Veja o trailer de Noite Passada em Soho: