Após atravessar a Argentina, o jovem Martín Nunca chega a uma Buenos Aires inteiramente inundada por águas turvas misturadas a lixo e esgoto. De barco, percorre a cidade submersa. Vê cartazes fixados em muros que ainda restam secos: “Submergindo, mas com muita esperança”. Em seguida, depara com uma representação caricata de Carlos Menem, o então presidente da República. É um clown, sorridente, vestindo terno branco e pés de pato. É o responsável pelo caos e, também, foco improvável da esperança daqueles que ainda não sucumbiram, afogados.
Essa é uma das sequências de A Viagem (1992), filme que deu ao cineasta Fernando Solanas (1936-2020) o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes, entre outras distinções (melhor fotografia em Gramado entre elas). Solanas morreu no sábado (7/11), aos 84 anos, vítima da covid-19. Nas últimas décadas seguiu carreira política, elegendo-se deputado e senador e concorrendo à presidência da Argentina. Paralelamente, havia voltado aos documentários de denúncia, emulando, com títulos como Memórias do Saque (2004) e A Última Estação (2008), o espírito combativo de seus trabalhos iniciais, notadamente o ensaístico A Hora dos Fornos (1968, codirigido com Octavio Getino), um dos monumentos históricos do cinema não ficcional latino-americano.
Foi entre o jovem documentarista e o político veterano que despontou esse artista delirante, felliniano, que apostava em metáforas aparentemente impossíveis (como filmar uma Buenos Aires alagada com orçamento de cinema periférico?) e referências múltiplas (do Martín Fierro de José Hernández à Macondo de García Márquez) para construir uma obra de grande potência simbólica. Em A Nuvem (1998), espécie de continuação de A Viagem, a capital argentina não está submersa, mas a chuva cai incessantemente há 1,7 mil dias. Enquanto, nas ruas, as pessoas literalmente caminham para trás, um grupo de teatro tenta evitar que seu espaço seja demolido para dar lugar um shopping center. Os temas podem parecer óbvios, mas a riqueza da construção estética complexifica a experiência cinéfila.
Entre outros prêmios, A Nuvem ganhou três troféus no Festival de Veneza (melhor trilha sonora, prêmio da Unesco e do júri jovem). Fechou o ciclo de maior consagração de Solanas no circuito de festivais, aberto com seu filme mais popular, Tangos, o Exílio de Gardel (1985), que, ao abordar a vida de argentinos em Paris durante a ditadura militar, abriu as portas para esse cinema em que a encenação e o exagero substituem o registro naturalista da denúncia social. Tangos levou o Grande Prêmio do Júri em Veneza, enquanto Sul (1988), o mais intimista de seus filmes sobre os crimes da ditadura, deu a Solanas o troféu de melhor diretor em Cannes.
Antes, nos anos 1960, tempos de Cinema Novo, Solanas e Octavio Getino haviam lançado o manifesto Hacia un Tercer Cine, defendendo formas de expressão próprias da América Latina, em uma “descolonização da cultura”. O primeiro cinema seria o da indústria de Hollywood, e o segundo, o que naquela década era identificado como o “cinema de autor” europeu. O caminho do terceiro cinema seria a libertação dos vícios de ambos, defendiam Solanas e Getino, que paralelamente realizavam A Hora dos Fornos, espécie de exemplo ilustrado do manifesto.
É sugestivo que, após A Hora dos Fornos, Solanas tenha lançado dois documentários sobre Juan Domingo Perón (1895-1974), depois migrado para a ficção com Os Filhos de Fierro (1978) e, já no exílio francês, dedicado-se a um longa sugestivamente intitulado O Olhar dos Outros (1980). É como se a terceira via, inicialmente imaginada com a não ficção engajada, fosse reformulada a partir de um exercício de alteridade e distanciamento dos temas abordados. O caminho que o levou a Tangos, Sul, A Viagem e A Nuvem foi consequência disso.
No fim das contas, no entanto, são todos discursos válidos, afirmados por filmes importantes e, em alguns casos, memoráveis. Todos são gritos de um artista em ininterrupta pesquisa de linguagem, sempre buscando a forma que julgava mais coerente para se expressar. Seu legado, além dos grandes filmes que nos deixa, também está nessa busca.