Em 1991, a Caixa Econômica Federal decidiu demitir 110 grevistas por justa causa em São Paulo, Belo Horizonte e Londrina (PR) por continuarem uma greve após decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de reabertura das agências.
As demissões foram revertidas pouco mais de um ano depois, após o impeachment do então presidente Fernando Collor. Nesse ínterim, os demitidos passaram a ter seus salários pagos por meio de um desconto de 0,3% na folha de pagamento de 35 mil bancários solidários ao movimento.
A campanha Não Toque em Meu Companheiro, que exigia a reintegração dos 110 demitidos, dá nome ao mais recente documentário da cineasta Maria Augusta Ramos (diretora de O Processo), lançado na quarta-feira (15) em plataformas de streaming.
No filme, a diretora promove o encontro de 50 dos demitidos quase 30 anos depois do episódio e traça um paralelo entre a desestatização promovida por Collor e a atual política econômica do governo de Jair Bolsonaro.
— O documentário é um lugar de memória, mas quis visitar o momento atual. Após 30 anos, vemos que o discurso do Collor de combate à corrupção e aos privilégios era ridículo. Bolsonaro foi eleito quase com a mesma pauta — afirma a cineasta.
A obra critica o que chama de política neoliberal dos governos Collor e Bolsonaro e busca traçar um paralelo entre as duas gestões por meio de críticas públicas da filósofa Marilena Chauí, professora da USP historicamente ligada à esquerda.
A tese é que Bolsonaro retoma o discurso de desvalorização do servidor público e de defesa de privatizações, lançado nas eleições de 1989, mas agora em conjunto com o discurso pró-empreendedor e a uberização do trabalho. O termo faz referência às relações de trabalho em que o trabalhador não é mais empregado, e sim visto como um "empreendedor de si mesmo".
Em 74 minutos de filme, ex-grevistas contam as dificuldades pelas quais passaram à época e dão suas visões sobre movimento sindical, serviço público e privatizações.
Os discurso de Collor contra os "marajás", funcionários públicos que recebiam salários altos e mordomias, é intercalado com falas e propostas de Bolsonaro e Guedes a favor de privatizações e do corte de jornada e salários de servidores.
"Os marajás (do discurso de Collor) éramos nós, funcionários públicos, era o trabalhador. Os verdadeiros marajás continuam", diz uma ex-grevista durante o encontro.
Em outra reunião, os ex-grevistas dos anos 1990 conversam com bancários da Caixa nos dias de hoje. No diálogo, fica evidente a perda de força do movimento sindical.
— Essa história de luta sindical e solidariedade hoje seria difícil de acontecer. É interessante ver o conflito geracional, os jovens de hoje cresceram em outro momento histórico, formados pelo individualismo, pelo pensamento do neoliberal — diz a diretora.
A privatização do banco não está até o momento na lista de desestatizações do ministro Paulo Guedes, mas sim a venda de subsidiárias como a Caixa Seguridade. Na obra, essa possível venda é criticada pelos ex-grevistas como sendo uma forma de desmantelar a instituição financeira.
A ideia de que a Caixa cumpre um papel social também é explorada ao longo das conversas, com o apoio de falas do economista heterodoxo Luiz Gonzaga Belluzzo.
O dilema entre ter rentabilidade como um banco privado e manter crédito subsidiado para cumprir essa função social permeia toda a obra, que foi coproduzida pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae).
Enquanto jovens bancários e ex-grevistas falam sobre a importância do crédito habitacional ou de manter agências deficitárias em locais pobres, o espectador é apresentado a agências móveis da Caixa instaladas em barcos, que atendem a região amazônica, por exemplo.
Embora não tenha feito entrevistas nesses municípios, a diretora diz que as imagens tiveram a intenção de dar uma noção ao espectador a respeito da dimensão do trabalho realizado pelo banco:
— Fiz questão de sair do eixo Sul-Sudeste. Agências em barcos certamente não são rentáveis, mas têm importância nas regiões em que estão.
A diretora afirma, no entanto, que não conseguiu autorização da atual gestão do banco para gravar dentro das agências bancárias.
Não Toque em Meu Companheiro (2020)
Direção de Maria Augusta Ramos, 74 min, disponível em plataformas de streaming como Looke, Oi Play e Vivo Play