Por Zeca Brito
Cineasta, diretor do Instituto Estadual de Cinema do RS (Iecine)
Na semana em que se comemora o dia do cinema gaúcho (a ser celebrado na sexta-feira, 27/3), nos cabe refletir qual o papel do Estado em nossa cinematografia. Além de ter relevância estratégica na indústria audiovisual nacional, o Rio Grande do Sul possui um importante papel histórico. Dar conta dele é uma das missões que assumimos frente ao Iecine. Em 2019, criamos um Núcleo de Pesquisa, Informação e Memória, com o propósito de recolher pesquisas historiográficas realizadas por instituições como a Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Estado (APTC), a Fundação Cinema RS (Fundacine) e o Sindicato da Indústria Audiovisual local (Siav). Esse núcleo é liderado pelos professores Glênio Póvoas e Fatimarlei Lunardelli e pela jornalista Mônica Kanitz, da Cinemateca Paulo Amorim. Já sabemos, por exemplo, que o Rio Grande do Sul produziu um total de 476 filmes em longa-metragem em mais de um século de filmografia.
E segue produzindo. Com um número expressivo de projetos inscritos, os editais FAC/FSA Audiovisual e FAC Audiovisual Entre Fronteiras devem distribuir, em 2020, R$ 7,7 milhões para filmes gaúchos. Audiovisual é arte e é indústria, é produção simbólica e construção de identidade. E, acima de tudo, é um dos setores que melhor distribuem renda, articulando-se diplomaticamente e alcançando outros territórios com valores culturais.
O Rio Grande do Sul é responsável por 11% da economia do audiovisual que, em todo o país, corresponde a cerca de R$ 25 bilhões. O fortalecimento do histórico que garantiu essa participação e a valorização de nosso capital simbólico foram os primeiros passos para buscarmos novas conquistas na construção de políticas públicas efetivas. Mas como ocupar e–sse espaço perante os poderes e os fundos de incentivo? O desconhecimento do potencial mercadológico do audiovisual afastou parte da classe política dominante na esfera federal.
Quando se fala em financiamento público para obras de arte, diversos clichês e distorções são associados ao setor audiovisual, que é visto como instância de transgressão ou um perigoso opositor a governantes autoritários (e realmente o é). Quando se fala de indústria audiovisual, é preciso saber que a instância da liberdade criativa está também ligada à liberdade de mercado. A Netflix sabe disso. Ideologia, para a Netflix, pode ser traduzida como consumo. As pessoas pensam diferente e vão consumir produtos diferentes. Por isso, a empresa oferta a série O Mecanismo e o filme Democracia em Vertigem. A diversidade é fundamental para a economia criativa. Sem ela, não há oferta ao mercado, pois a sociedade é plural e diversa.
Na nossa democracia, diversos setores da economia orbitam em torno dos poderes. O audiovisual não pode ser diferente. Se as indústrias armamentista, farmacêutica e automobilística buscam seus representantes no parlamento e têm seu papel na costura política, por que o audiovisual agiria diferente?
A diversidade é fundamental para a economia criativa. Sem ela, não há oferta ao mercado, pois a sociedade é plural e diversa.
A indústria audiovisual gera mais emprego do que qualquer um desses três setores, mas sua articulação com os poderes é recente. Talvez até tardia. Nos últimos 30 anos, o setor concentrou esforços em pautas setoriais. Encontrou sua maneira de fazer caixa, alimentada pela própria indústria, mas não se fortaleceu politicamente.
A crise atual constitui uma oportunidade de redesenhar o cenário e encontrar novos eixos para uma política setorial e também colegiada. Em 2019, o Iecine foi até todos os parlamentares gaúchos. O resultado desses encontros foi surpreendente e inédito. No mês de dezembro, diversas emendas parlamentares foram aprovadas para o orçamento de 2020 pelo Congresso. São ações que articulam diferentes partidos e perspectivas em torno de uma pauta comum: o audiovisual. Cada um desses projetos corresponde a uma visão de mundo e a uma ação específica. Cada emenda revela nossa diversidade e as amplas possibilidades de atuação que o audiovisual pode ter. São recursos que um dia tocarão o solo gaúcho, buscando revelar nossa produção aos olhos do Brasil e do mundo.
Nosso objetivo é fortalecer o capital simbólico (filmografia), solidificar as bases históricas (historiografia), garantir o fomento e o capital econômico, e, agregando distintas visões de mundo, construir um capital político. Estão no horizonte a revitalização e a digitalização da Cinemateca Paulo Amorim, o projeto Cinema Negro em Ação, que vai atender a 150 jovens negros em um programa de formação inédito, o programa Revelando o Rio Grande, com 50 oficinas de capacitação artística distribuídas pelo Estado, além da criação de um portal com dados de nossa cinematografia combinado a publicações impressas, mostras itinerantes e um edital de custeio para a participação de realizadores gaúchos em festivais de cinema.
Diante de um mundo em paralisações e catástrofes, cabe ao audiovisual caminhar com certa articulação, tendo a visibilidade da classe política, pois, como diria o saudoso Zé do Caixão, “quem não aparece, desaparece”.