A estreia de O Escândalo é um bom momento para medir o quanto a temperatura política da indústria de entretenimento mudou desde o fim do século passado. A primeira vez que uma grande produção hollywoodiana abordou o assédio sexual em ambientes corporativos foi em um filme de 1994, adaptação de um romance de Michael Crichton no qual o decente Michael Douglas era acuado por sua chefe Demi Moore – uma premissa que ignorava a estatística: homens não só praticam a maioria dos assédios como havia menos mulheres em cargos executivos naquela época. Um quarto de século depois, O Escândalo chega para tornar filme um caso real em tempos de movimento #metoo.
Dirigido por Jay Roach, o longa reconstitui as acusações de assédio sexual que derrubaram um dos barões da mídia americana, Roger Ailes, o presidente da Fox News, organização pertencente ao império de Rupert Murdoch e voltada ao público conservador americano. A narrativa é encenada pelo ponto de vista de três personagens distintas. Duas delas são reais: a apresentadora veterana Gretchen Carlson (Nicole Kidman) foi a primeira a denunciar, em 2016, o assédio sexual e o bullying do poderoso Ailes (John Lithgow, em um trabalho impressionante de maquiagem que não empana o brilho de sua performance).
O caso ganhou notoriedade e precipitou a demissão de Ailes após as denúncias serem corroboradas por Megyn Kelly (Charlize Theron, com a entrega dedicada de sempre), estrela da emissora e apadrinhada de Ailes.
Uma terceira personagem, fictícia, é a testemunha do espectador ao longo da trama. A entusiasmada Kayla Pospisil (Margot Robbie) é uma jovem produtora que galga postos na emissora ao mesmo tempo em que o prestígio de Gretchen é minado por um vingativo Ailes e Megyn se vê alvo de ataques online das milícias digitais de apoiadores de Donald Trump. Mas logo Kayla depara com a pressão característica exercida por Ailes. Ele pode torná-la estrela da TV, desde que ela manifeste sua “lealdade” tolerando graus vários de constrangimento, o menor deles uma “voltinha” para o executivo avaliar o corpo das funcionárias. “TV é uma mídia visual”, diz ele.
Mosaico
O Escândalo espelha uma tendência recente, e curiosa, do cinema americano. Como Adam McKay e Todd Philips, seu diretor, Jay Roach, veio da comédia besteirol: dirigiu Austin Powers (1997) e Entrando numa Fria (2000) antes de se lançar a filmes politicamente mais urgentes com Virada no Jogo (2012) e Trumbo: A Lista Negra (2015). A forma como O Escândalo é costurado mistura a tensão palpável das cenas com intervenções de alguma das três personagens apresentando a realidade corporativa da Fox News em um tom entre o didático e o satírico. É uma estrutura que guarda semelhanças com A Grande Aposta (não por acaso, as duas obras partilham o mesmo roteirista, Charles Randolph).
Essa história já havia sido contada em uma minissérie do canal Showtime chamada The Loudest Voice (“A voz mais alta”, adaptado do livro A Voz Mais Alta na Sala, do jornalista Gabriel Sherman). A série rendeu a Russell Crowe o Globo de Ouro deste ano no papel de Ailes, e traz Naomi Watts como Gretchen Carlson, mas é centrada na biografia de Aisles, enquanto o filme dá voz às principais mulheres na trama.
O que tornou as denúncias das jornalistas e produtoras da Fox News tão particulares é o fato de partirem do canal que apoiou Trump logo que ficou clara a possibilidade de sua eleição – provando que o machismo faz vítimas em todos os lados da polarização alimentada por políticos populistas como Trump ou pela linha do próprio canal.
Nesse contexto, o filme foi definido como catártico pela própria Megyn. Tem suas ousadias e seus defeitos. O principal problema é o tratamento ameno de “salvadores da pátria” concedido aos donos da emissora – a família Murdoch, que demite Ailes após o escândalo.
A ousadia que corre mais riscos é a forma como se mostra o assédio à personagem de Margot. Não apenas Ailes exige a nudez parcial da jovem, como a câmera a filma lentamente, às vezes pelo ângulo do abusador. Se é um deslize ou uma sutil forma de discutir a cumplicidade do espectador em outra “mídia visual”, fica aberto a interpretações.